Kent Haruf (1943-2014), autor norte-americano, escreveu apenas seis obras em vida, todas com narrativa situada em Holt County, região fictícia do estado do Colorado. A sua obra circunscreve-se à vida mainstream da sociedade rural e interior norte-americana, formando, tanto quanto sabemos, uma continuidade temática, com livros que retomam o enredo anterior e/ou apresentam intertextualidade entre si. Plainsong (1999) terá sido o maior sucesso do autor no seu país, o que explicará a sua tradução em Portugal no ano 2000 com o nome Canto Chão (Dom Quixote). Surge agora a tradução de Our souls at night (As Nossas Almas Na Noite, Alfaguara), publicado postumamente em 2015, e cujas últimas páginas foram escritas nos últimos dias de vida de Haruf.
Estamos perante uma novela: narrativa curta e com capítulos breves, predominância do discurso direto, omissão de extensas descrições de lugares ou estados de alma, focalização num núcleo restrito de personagens. Conta a história de dois viúvos, na terceira idade, que vivem sozinhos, cada um deles, numa casa enorme. Um dia, Addie Moore bate à porta de Louis Waters, e propõe-lhe dormirem juntos, logo na abertura: “E então chegou o dia em que Addie Moore se decidiu por Louis Walters”. A premissa não poderia ser mais atual. Como combater a solidão na terceira idade? É legítimo pedir a companhia de um vizinho para adormecer? Os filhos, os que habitavam o casarão agora vazio, o que dirão? A “sociedade”, essa mancha coletiva cujos habitantes dos casarões ainda vivem na ilusão da presença eterna dos filhos, que dirá? E aos amigos idosos, companheiros no café, e às suas piadas sobre a “energia” de Louis, o que responder? É por aqui que a novela segue, descrevendo passo a passo a confiança ganha por Addie e Louis para atravessar o caminho da resistência social à necessidade de companhia. Ao longo do processo, conhecem-se e conhecemo-los. O que até ali é fofoca da cidade, discute-se lado a lado antes de adormecer: a traição conjugal de Louis, a morte da filha de Addie (Connie) em criança, as especificidades das respetivas relações. Entretanto, o amor acontece.
Gene, o outro filho de Addie, com problemas conjugais e laborais, dá origem à reviravolta. Jamie, o neto, tem de passar uns dias com Addie, obrigando à reconfiguração da “relação” com Louis. Os velhos, em renovação das próprias vidas para sustentarem a terceira idade, encontram uma criança com a vida estruturada para ser autónoma – entenda-se, solitária –, estando permanentemente a jogar de telemóvel na mão. Estamos, no discurso bacoco da política, perante a questão fraturante sobre o que é uma família; literariamente, perante a questão secular das relações familiares e da sua organicidade: Addie e Louis partem, num momento simbólico dessa ambiência familiar, para o campo, passando uma noite numa tenda, mostrando ao menino da cidade as vantagens da vida do campo relativamente à vida no ecrã. Gene, o pai da criança, não aprecia a ousadia, e o caso amoroso esfria: “Depois da discussão com Gene, Addie e Louis continuaram a encontrar-se. Ele ia a casa dela à noite, mas as coisas tornaram-se diferentes; perderam aquela imponderável alegria do prazer da descoberta. Pouco a pouco, houve noites em que ele ficou em casa, noites em que ela leu sozinha horas a fio, já nem sequer desejar que ele lhe fizesse companhia na cama. Desistiu de esperar por ele nua. Continuaram a dormir abraçados nas noites em que ele aparecia, mas a partir daí as coisas tornaram-se sobretudo uma questão de hábito, de devastação, de solidão e desalento, como se tentassem proteger aqueles momentos juntos daquilo que ainda estava para acontecer. Agora deitavam-se, ficavam acordados em silêncio ao lado um do outro e nunca mais fizeram amor.” Como não podia deixar de ser, as tensões familiares presentes advêm de circunstâncias passadas: Addie e Gene têm contas a acertar pelo tratamento que este recebeu, durante o crescimento, por parte da mãe, ao que se subentende ter sido a reação negativa sobre o filho, que estivera presente quando Connie fora atropelada por um carro. Até ao final, a obrigatória adaptação dos velhos aos novos, a resolução de problemas que passa pela própria anulação, a vida passada intrometendo-se na presente, que é a de velhos apaixonados (será?) impossibilitados de o viverem pelos encargos familiares.
A perspetiva de narração heterodiegética e a ausência de floreados literários torna a obra acessível (e dirigida) ao grande público. Mais para o final do livro, e com o autor perto da morte, surge a intertextualidade autorreferencial como que a fechar a Obra de uma vida. Será sobretudo este aspeto que explicará o sucesso deste seu último livro nos Estados Unidos. Este é, então, um livro para os leitores mais fiéis, que, pela sua simplicidade e pertinência temática, falará a um público internacional também. Pela descrição de um “viver habitual” de uma região específica, lembra, mas só isso, em alguns momentos, o registo de John Steinbeck, e aproxima-se, numa versão muitíssimo mais confortável, do acerto de contas com o passado que lemos em The Sense of an Ending (2011), de Julian Barnes.
A Netflix lançou recentemente uma adaptação cinematográfica do livro, com o nome, em Portugal, de Nós, ao anoitecer, com Robert Redford e Jane Fonda nos principais papéis, a demonstrarem que ainda estão por cá, e que têm muito a ensinar aos heróis apolíneos das sessões televisivas de domingo à tarde. A performance dos dois veteranos salva o aborrecimento de um produto que, ainda assim, é uma adaptação bem conseguida do livro. O embelezamento da publicação com o casal na capa há de estimular as vendas este Natal.
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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