O alemão Jürgen Kaube é um destacado especialista na divulgação científica, actualmente editor do reputado jornal diário Frankfurter Allgemeine Zeitung, um dos mais importantes formadores culturais da opinião pública germânica. Em 2017 publicou o livro As Origens de Tudo, publicado agora em Portugal pela Edições Dessassossego, chancela da Saída de Emergência, através da sua nova colecção Eu amo Ciência, dedicada a esta área essencial e tão descurado do conhecimento humano. A Joana Aroso teve oportunidade de o entrevistar, e o resultado foi uma conversa animada sobre revelações e o percurso deste cultor da curiosidade no seu sentido mais amplo.
As Origens de Tudo é composto por dezasseis capítulos em que em que alguns dos pilares sociológicos, culturais, científicos e filosóficos da identidade humana são analisados na sua concepção e evolução. Sempre com uma linguagem desenvolta, o alemão escreve num estilo aliciante e informado sobre assuntos tão diversos como a roda, a linguagem e a escrita, a cidade e o Estado e a Música, em textos com tanto de científico como de filosófico e histórico.
A Filosofia (juntamente com a literatura) foi aliás o ponto de partida da sua formação e um dos seus interesses principais desde tenra idade, embora alguns semestres de ingressar no curso tenha optado pela economia e alargado a sua curiosidade a outras áreas do conhecimento. “Optei por fazer algo na Universidade que apenas ali seria possível fazer. Na minha arrogância juvenil considerava poder estudar sozinho literatura e filosofia. Mas Economia era impossível de fazer em casa, sozinho. (…) Mais tarde percebi que Economia não era suficientemente exigente do ponto de vista intelectual. (…) Pelo que continuei os meus estudos universitários como investigador na área da sociologia.” Mais tarde, o jornal onde trabalhava propôs-lhe o jornalismo científico e na área das Humanidades, actividade que mantém até à actualidade. Esta diversidade formativa explica o carácter híbrido do livro e enriquece a sua leitura, com motivos de interesse qualquer que seja o nível e área de conhecimento dos leitores.
Os assuntos escolhidos tiveram por critério primordial a inovação social que trouxeram, e não necessariamente a tecnológica, como a culinária e a linguagem. A actualidade das matérias foi também essencial, pelo que invenções tornadas obsoletas não fazem parte do livro.
Sobre a luta bem actual entre informação e conhecimento, Jürgen Kaube tem uma perspectiva aberta, reconhecendo a importância de sites como a Wikipedia para uma ideia generalista dos assuntos, sempre consciente das limitações e perigos que a informação sem o devido enquadramento teórico representa. A título de exemplo, refere as cidades. “Quais os critérios para que uma cidade seja considerada como tal? A existência de um muro? É uma questão de auto-suficiência alimentar? O número de habitantes? (…) Esta é uma de muitas matérias em que a informação por si é insuficiente para tomar decisões. É necessário seguir as discussões na disciplina, porque a pesquisa discute estas matérias. (…) A informação não dá resposta a qualquer pergunta. É necessário um conceito (…) que possa ser comprovado. (…) A abstracção é hoje banal para nós, mas para civilizações como a Mesopotâmia não era fácil de desenvolver. O meu exemplo favorito são os números. Os primeiros números nas sociedades simples (se é que podemos assim designá-las) eram um, dois, três e «muitos». Mais tarde, eram todos os dedos – dez. Mas o salto para o onze era enorme. (…) Pior foi a passagem do número para o objecto que era contado. Os primeiros números em muitas sociedades eram operacionalizados apenas para algumas coisas. Temos palavras como trio. Um trio pode ser usado para um pequeno grupo musical, mas já não se adequa a livros por exemplos. Para os livros tem que ser uma trilogia, uma outra palavra para um objecto específico diferente, sob pena de o seu uso ser absurdo. Depois temos o zero, um número que não conta e que os gregos não tinham, por ser a maior abstracção imaginável. É este o fascínio de descobrir as origens, por questionarem aquilo que hoje temos por natural, como contar até quatro.”
Walter Benjamin, Heiddegger e com especial devoção Niklas Luhmann são as suas referências literárias principais. Kaube confessa ter dedicado quatro anos da sua vida a ler grande parte da obra do advogado e sociólogo alemão, alterando a sua forma de pensar o Mundo e exercendo influência forte na sua escrita e neste livro em concreto, com as suas perspectivas e sensibilidade para os problemas. Como invenções/descobertas mais marcantes da História, o jornalista destaca a electricidade e o clorofórmio (pela possibilidade de diminuir a dor nas intervenções médicas depois da segunda metade do séc.XIX).
Perante o eterno confronto entre a ciência e a religião, Jürgen Kaube defende que ambas são conciliáveis e nunca mutuamente excludentes, usando como exemplo o facto de não haver explicação científica para o Mal, enquanto que na Teologia essa definição é histórica e diversa, assim como o facto de o acaso e as probabilidades não serem uma solução suficiente ou convincente para quem procura algo mais. Sempre fascinado pelas descobertas que foi fazendo, Kaube ainda hoje se apaixona pelos seus estudos e pelas histórias que deles brotam, enriquecendo o trabalho de uma vida.
Regressando a As Origens de Tudo, é com Hegel que Jürgen Kaube justifica a escolha do tema, mas também a importância de repetir o mesmo exercício de procura das origens como forma de “estimular o entendimento a ir muito além do saber já adquirido.” (245). “Conhecer através das origens é apurar um sentido para a compreensão da necessidade de passagem do tempo na formação dos processos da civilização, mas também perceber que a aceleração que alguns começos civilizacionais sofreram, através do aparecimento da agricultura, da cidade, do estado e da escrita levou á intensificação da sequência de inovações e a uma maior concentração do seu desenvolvimento num determinado espaço.” (244)
Uma personagem interessante e um livro que vai para além da mera curiosidade, procurando um sentido para cada fenómeno e o enquadramento para o seu surgimento e evolução.
Entrevista com o autor no programa da RTP Todas as Palavras AQUI
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