home Antologia, LITERATURA As Paixões de Julia – Somerset Maugham (Asa, 2019)

As Paixões de Julia – Somerset Maugham (Asa, 2019)

Os títulos estrangeiros mal traduzidos em português nunca mais acabam de contar a sua história. Do cinema aos livros, há décadas que todo um cortejo de imbecilidades, ou simples incompreensões, vem desfilando diante do leitor ou do espectador mais atento, o que teve o condão de estragar um elemento fundamental para o entendimento e a apreciação das obras. No caso deste As Paixões de Julia, de William Somerset Maugham, passa-se qualquer coisa de semelhante a isso, mas também algo completamente diferente. O título original deste romance de 1937 é, simplesmente, Theatre. Sucede, porém, que, no caso de Somerset Maugham, se trata de um título que pode gerar equívocos e falsas partidas. Pense-se apenas neste singelo facto da sua biografia: o autor de Servidão Humana foi longamente dramaturgo. Houve mesmo um grande autor português que lhe chamou «um dos reis do teatro britânico». Esse português foi Jorge de Sena – de repente, um dos autores mais populares neste país, que o editou às três pancadas (ou não de todo), durante tanto tempo, e o deixou em salmoura póstuma por décadas; mas autor que é agora (exultemos) dos mais reclamados por qualquer quadrante da vida intelectual (já agora, o louvor a Maugham está em A Literatura Inglesa, Cotovia, 1989). Espera-se que tenha sido uma consideração do género – e de género, literário – a levar à opção editorial de não traduzir à letra o título deste romance de William Somerset Maugham.
Traduzir, hoje em dia, William Somerset Maugham (desculpe-se mais uma digressão) é um acto de coragem, ou de simples loucura, que merece simpatia, espanto e até incredulidade, mesmo que esta catadupa de reacções seja coroada de não menor cepticismo. É espantoso que uma editora aposte (passe o prosaísmo, que o refinado Maugham havia de odiar) num autor como este. É só uma questão de contar pelos dedos o número de livros actualmente disponíveis nos catálogos portugueses, deste autor com uma «obra vasta e artesanalmente perfeita» (Sena, uma vez mais, na mesma obra). Poupe-se o trabalho, que é pouco, infelizmente: O Fio da Navalha (Asa, 2010); Servidão Humana (Asa, 2008). Certo é que, neste reduzidíssimo elenco, se encontra, provavelmente, a obra-prima de Maugham, Servidão Humana, que o mesmo Sena considerava, sem exagero, um dos romances do século (o passado, obviamente).
No entanto, não deixa de ser lamentável que, pelo menos, um dos vários títulos, em tempos, disponíveis não se tenha reeditado. A Lua e Cinco Tostões é um notável exercício romanesco, que funde com enorme mestria de composiçao e montagem, os universos da biografia, da arte e da evocação de um tempo e de um lugar. Uma espécie de releitura da boémia artística e da fuga a esse canto de sereia, encarnadas na personalidade de Gauguin no seu trânsito entre o Velho Mundo e os Mares do Sul. Mas não esqueçamos o cepticismo, que por vezes é melhor que o sal, a temperar: quantos livros de Maugham se traduzirão, entre nós, depois deste As Paixões de Julia?
Somerset Maugham, sejamos sinceros, não goza, hoje em dia, de um prestígio especial. Podíamos ser mais devastadores e dizer que, mesmo no mundo anglo-saxónico, um esteta como o autor de O Véu Pintado, ou o requintado narrador de Biombo Chinês, têm pouco a dizer a um tempo como o nosso. É possível que a cotação de William Somerset Maugham na volúvel bolsa de valores da posteridade seja devedora dessa corrente de opinião, que considera obsoletos os seus enredos, decisivamente datados e com excessos de postiço. Os nomes de Graham Greene e Anthony Burgess poderão contrariar esse consenso, que cheira a paz podre. Ler e reler William Somerset Maugham é, com toda a certeza, mergulhar num outro mundo, aceder a paragens exóticas e lugares muitas vezes remotos, usufruir da palavra de um cultor do verbo que não responde ao gosto actual – mas nunca será tempo desperdiçado.
As Paixões de Julia elege uma figura feminina em torno da qual personalidades e dinâmicas sociais e de classe fazem as suas movimentações, criam os seus próprios universos, o que não foi raro na sua produção. Por exemplo, no romance de estreia do autor – Liza of Lambeth, traduzido entre nós (lá vamos nós outra vez), em tempos muito idos, como A Pecadora Liza –, mas também no último que o escritor publicou, Catalina. As Paixões de Julia é, naturalmente, devedor de um projecto sobremaneira diferente. Em vez das margens desfavorecidas da sociedade, como no caso do primeiro, ou de uma época histórica recuada, como sucede no derradeiro, o autor elege um mundo que conheceu em primeira mão: o do teatro.

Desde o prefácio que Somerset Maugham se revela um conhecedor experimentado da arte e da prática teatrais – «em todos os actores existem vestígios da criança; é a este facto que devem muitos dos seus maravilhosos dons» (p.8). Esse conhecimento rapidamente se propaga às personagens do romance, que, como é natural, discorrem amiúde sobre os meandros da prática teatral – «se a peça for boa são os actores que o público vai ver e não a peça» (p.19); «Julia tinha declinado resolutamente a proposta americana ainda antes de a ter mencionado a Tom; a peça estava a ter muito boas casas. Mas uma dessas crises inexplicáveis que ocasionalmente se abatem sobre o teatro grassava agora em Londres e as receitas sofreram uma quebra inesperada.» (p.188)
Neste romance, a energia que firma o seu ímpeto não é bem o «grande teatro do mundo», à maneira da visão de Calderón de La Barca. Quase se poderia dizer, pelo contrário, que a força que percorre todo o livro é a do «grande mundo do teatro», ou seja, o palco não serve como metáfora para o mundo, mas é mais este que metaforiza o palco. Toda a vida, todo o arco narrativo e espácio-temporal do romance, encontram no teatro o seu material de construção, o cerne de um projecto, enquanto produção de sentidos.
Assim, Julia Lambert começa por ser actriz, juntamente com o também actor Michael Gosselyn. Este virá a derivar para fora dos tablados, mas manter-se-á nas margens próximas da produção teatral – para mais tarde regressar, assim compondo um arco perfeito em que no seu começo está o seu fim, parafraseando o poema de T.S. Eliot. Pelo contrário, em Julia a mudança não será essa. Toda a sua metamorfose é, digamos assim, interior. O conflito nuclear da protagonista reside na oposição entre amar e menosprezar Michael, querê-lo e não querer saber sequer da pessoa, quanto mais do actor e do produtor teatral.
Nenhuma destas criaturas de Somerset Maugham consegue, realmente, sair do teatro, ser outra coisa que não um habitante desse mundo de recriações e projectadas realidades – «O que lhe apetecia [a Julia] era ter ido dançar ao Quag’s, não com Michael, mas com Luís XV, Luís da Baviera, ou Alfred de Musset.» (p.109) Como não ver em tudo disfarces, máscaras, transposições de uma verdade que nunca chega, a a que nunca se aporta? Por isso mesmo, a vida em comum de Julia e Michael está tão sujeita a uma série de representações e passagens do real ao fictício. Tudo obedece a uma infinidade de subentendidos e encenações, às deixas e à contracena de uma espécie de guião invisível. Mesmo o vasto panorama do mundo exterior parece sucumbir às necessidades e aos esquemas organizadores da vida do teatro – «Entretanto, Julia tinha representado uma série de papéis importantes e era reconhecida como a melhor actriz da geração mais jovem. Durante a guerra, o teatro prosperou consideravelmente, e ela tirou partido do facto de as peças estarem muito tempo em cena.» (p.65)
Na narrativa, o que fora, ainda escassos momentos antes, a consideração ponderosa do início da I Guerra Mundial, e a decisão de Michael se alistar, rapidamente cede lugar ao verdadeiro grande plano, «o grande mundo do teatro». Será assim até ao fim. Com um simbolismo entre o óbvio e o eficaz, a derradeira peça que o casal decide encenar chama-se Nos Dias de Hoje. E, para que nada se perca, neste envolvimento permanente entre representação e verdade, tudo se passará numa autêntica comédia de enganos. Quer as personagens – duplamente o são: no romance e nas peças em que actuam –, quer as suas movimentações, quer mesmo as suas falas, são a presa permanente do equívoco, da ilusão cómica. Tudo se manterá no fio da navalha, para usar um lugar-comum dos mais gastos, mas que, aqui, ainda possui a agravante de ser um título de Maugham.
Até ao descer do pano, tudo se manterá suspenso do drama que o romance monta e daquele que as personagens têm de viver e representar. Orgulho e amor do outro, amor-próprio e altruísmo, afecto ou repulsa, mais não podem ser do que ângulos, facetas de um mesmo sólido: a vida. Vida que equivale ao teatro. E vice-versa.

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