Numa atmosfera que desde logo nos transporta ao passado, recebemos o coro das mulheres troianas trajadas de vermelho. Estas mulheres serão, conjuntamente, uma só personagem e também a beleza de um cenário austero. São As Troianas que transformam alguns momentos em verdadeiros quadros vivos com os seus gestos suaves e a manipulação de meros panos brancos.
A narrativa é a dor de Tróia contada pelas mulheres cativas dos guerreiros Gregos, com os seus destinos nas mãos dos algozes que esqueceram a justiça e a dignidade humanas, praticando barbáries e desprezando os deuses. Os Gregos vieram «não porque lhes faltasse terra onde viver, ou vissem destruídas as altas torres das suas cidades», mas por ganância, sob o falso pretexto de uma mulher traidora: Helena.
Toda a peça é um lamento em voz de mulher. A rainha-matriarca, Hécuba, chora a dor pela perda dos filhos e pelo destino das filhas. Tenta, no meio do sofrimento, encontrar um sentido para o destino que lhe coube em sorte. Maria Rueff está esplendida! Rendemo-nos à actuação desta grande senhora dos palcos. Nem por um momento duvidamos que é Hécuba quem nos expõe as suas agruras, a mágoa vê-se-lhe no rosto, sente-se no corpo curvado, ouve-se na voz que projecta como ninguém. Nem quando as botas Doc Martens lhe surgem sob as longas saias, duvidamos ser Hécuba quem nos fala e comove.
O texto de uma grande dificuldade, com uma excelente tradução de Luísa Costa Gomes, não atrapalha nenhum dos actores. Proferem-no com a naturalidade possível, repetindo referências que já não são comuns aos espectadores. Alexandra Sargento é Cassandra, filha de Hécuba e sacerdotisa do deus Apolo. Num delírio de aparente loucura, que espelha o seu propósito de vida quando a morte já lhe é certa, vaticina as desgraças que recairão sobre os que agora se vangloriam e se apropriam das Troianas. Também ela está de parabéns sobretudo, a nosso ver, pela subtileza de um olhar revelador, que esclarece o espectador sobre a lucidez na alucinação.
Mulheres despojadas de pátria, família e de dignidade. Este é o ponto nevrálgico que infelizmente nos liga sempre à guerra e à actualidade. Também Andrómaca o é, nora de Hécuba, a quem matam o filho, ainda criança e inocente, de forma repugnante. Sandra Santos, excelente na pele de Andrómaca, dá vida a uma simples trouxa como se de um filho se tratasse!
Helena de Tróia é magnífica! Vera Moura, com simples detalhes que distinguem Helena das demais mulheres Troianas, um corpete em renda, um cinto de pedras, dispensaria estes ou outros adereços! A sua postura naturalmente sedutora denuncia Helena como a mulher fatal que Eurípedes retrata como a verdadeira causa da destruição de Tróia.
Sobre a encenação de António Pires, voltar a frisar a beleza dos quadros, os homens que transportam as mulheres nos braços em passos suaves, quase de dança, analogia destas mulheres aos objectos que se usam e descartam.
Nota menos positiva para os fios de microfone que por vezes atrapalham a movimentação em cena e para os pés descalços dos homens que adivinhamos gelados, visto que a peça ser levada a cena ao ar livre, em noites de temperatura distante da amenidade do Verão.
Última nota para os alunos finalistas da ACT – Escola de Actores, porque em nada comprometem o que qualificamos como um belíssimo espectáculo.
Levem um casaco quentinho e aplaudam este corpo de actores, mas guardem uma ovação de pé para a Maria Rueff!
Em cena até 17 de Agosto.
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