Como descrever este Assimetria, primeiro romance de Lisa Halliday, vencedora de um Whiting Award for Fiction em 2017, ano que antecedeu o lançamento desta sua obra? Desconcertante é a palavra que me ocorre. Desconcerta primeiro o próprio fluxo da narrativa, que se nos apresenta em dois momentos distintos. Um dedicado ao delírio que é justapôr duas existências em tudo díspares num romance a dois: um escritor consagrado na decadência do envelhecimento e uma jovem assistente editorial, que se envolvem numa América pós-11 de Setembro. As alusões às profundas alterações que se lhe seguiram na nossa História são subtis como a própria passagem do tempo, que se espraia por uns poucos anos sem que disso tenhamos muita consciência. Depois, um segundo momento dedicado à loucura de um mundo enegrecido pelo combate ao terrorismo que se lhe seguiu, na voz de um economista de dupla nacionalidade: nascido num vôo do Iraque para os EUA, conquista a proeza de ser de parte nenhuma, enquanto nos narra já de forma bem mais óbvia aquele lado da guerra (de todas as guerras, na verdade) que não vem descrito nas notícias, enquanto espera que o libertem do controlo num aeroporto.
São estas as telas que nos servem de pano de fundo para a grande assimetria aqui representada: o tempo, essa colossal fonte de desconcerto. Primeiro na forma como o vivem uma jovem na vertigem de encontrar o seu lugar num mundo já sem lugar para ninguém e um velho que, aparentemente, só consegue olhar para trás. Depois, expondo as contradições de um iraquiano em simultâneo americano, ensinado pelos EUA a ver o futuro como algo que se vai edificando com paciência mas ao mesmo tempo numa pulsão vertiginosa, e que, sempre que regressa ao seu Iraque natal, percebe que não há promessa de futuro que resista à incerteza quanto à mais básica sobrevivência.
Estas duas partes – o delírio e a loucura – são unidas apenas por um único fio condutor, tão ténue que mal se dá por ele: um programa de rádio (verdadeiro, de resto: Desert Island Discs da BBC Radio nos anos 90), para o qual Ezra Blazer – personagem principal na 1ª parte deste romance – é entrevistado, entrevista que nos aparece descrita como uma coda (alusão à relevância dada ao papel da música ao longo de toda a obra) na parte final do livro (mas que na verdade é uma transcrição da entrevista real ao “náufrago” Joseph Rotblat, conduzida por Sue Lawley), entrevista original por sua vez ouvida por Amar Jaafari – personagem principal da 2ª parte – e que marcou uma parte dos seus dias (num delicioso strange loop que mistura ficção e realidade).
Desconcertantes são também os pequenos detalhes, tecidos com acutilância, sobretudo nas descrições que Lisa Halliday nos faz do Médio Oriente, esse sítio que nós, ocidentais, fomos educados a renegar como a origem de toda a bárbarie. Na verdade, descobrimos aqui talvez outra grande assimetria deste romance: um mundo dentro do mundo, em que a família é instituição que se valoriza acima de tantas outras, em que a resiliência assume os tons da esperança e fé no que ainda hoje é desconhecido, em que a política se desenha como um real instrumento de mudança. E em simultâneo, um sítio onde tudo se regateia, até a vida capturada, em resgates pagos com moeda estrangeira.
A autora parece brincar com o tempo, e também com o papel convencionado para um narrador: mais do que apresentar-nos a narrativa na 1ª pessoa, ela vai-se desvelando de dentro do próprio pensamento de um par de personagens fascinantes. Misturam-se assim as memórias, as reflexões que delas emergem e a vida real, ou aquilo a que costumamos chamar-lhe. E é nesse prisma que se desvenda o paralelo entre eles: ambos com uma forma de viver a vida sem grandes expectativas ou ambições, perfeitamente confortáveis na sua irrelevância, mas simultaneamente revelando uma certa melancolia própria de quem não sabe muito bem para onde se dirige.
Talvez seja na aparente banalidade que rodeia as vidas comuns que se encontra a real resistência: à passagem do tempo, às convenções sociais, ao ódio e às tendências imperialistas dumas nações perante as outras.
Mais Literatura AQUI