Na noite em que Aurora Negra foi anunciado como projeto vencedor da segunda edição da Bolsa Amélia Rey Colaço, um grito de alegria e uma explosão de entusiasmo percorreu o átrio do Teatro Nacional D. Maria II. Toda a gente sorria, muita gente se abraçava. Isabél Zuaa, Cleo Tavares e Nádia Yracema iam ocupar aquela casa, falar com as suas próprias vozes, sem intermediários. Pela primeira vez na história da instituição, três atrizes negras conquistavam o direito de ocupar aquele palco, com um projeto artístico da sua autoria. Nessa ocasião Isabél Zuaa disse que “estava à espera desta peça desde os anos 90”. “Estávamos à espera há décadas, há séculos”, acrescentou recentemente Tiago Rodrigues, diretor artístico do TNDMII, e com toda a razão. As três atrizes mostraram naquele palco, com orgulho, generosidade e compromisso, que há conquistas que não podem e não vão mais ser adiadas. É tempo de uma AURORA NEGRA.
A peça começa com as atrizes a proporem uma aliança a Maria da Glória Joana Carlota Leopoldina da Cruz Francisca Xavier de Paula Isidora Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga, a Rainha de Portugal e dos Algarves, nascida em 1819 no Rio de Janeiro. Mas essa aliança exige um compromisso tanto ético, como político. A três atrizes sabem tudo sobre a vida e a história de D. Maria II, mas esta nada sabe sobre a história que elas vão contar. É preciso, portanto, que Maria da Glória se coloque no lugar de escuta.
Evidentemente que esse não é um lugar previsível ou expetável para quem está mais habituado a falar, do que a ouvir. É necessário contrariar as relações de privilégio, subverter as relações de poder entre quem fala e quem ouve. Por isso as três insistem: “Antes de te retraíres, de te agarrares àquilo que sempre conheceste e te foi ensinado, peço-te que ouças. […] Imagina que estás em tua casa com os teus filhos e de repente, sem que possas ripostar, mudar o curso das coisas, fazer-te ouvir, eles te são retirados sem que possas voltar a reclamá-los como teus”; “Imagina, Maria da Glória, que a tua vida não conhece outra coisa, senão a sujeição forçada”; “Imagina que deixas de ser dona do teu próprio corpo”; “Imagina que tens que lutar pelo direito de amar”. Uma pergunta ecoa e ocupa insistentemente toda a sala: “Estás a ouvir Maria da Glória?” Que é o mesmo que dizer: Estão a ouvir, todas e todos vocês, que apenas conhecem parte desta história? Conseguem imaginar uma outra vida que não a vossa? Teremos capacidade de compreender aquela história que nos contam, não a partir dos pressupostos em que fomos educados, mas a partir da própria experiência que elas relatam? Conseguiremos nós pensar a história a partir de um outro lugar que não o nosso? No fundo, estamos nós realmente disponíveis para ouvir?
O seu apelo à escuta confronta-nos com a nossa posição no mundo, mas Isabél Zuaa, Cleo Tavares e Nádia Yracema não subiram àquele palco para nos educar, muito menos para limpar as privilegiadas lágrimas que derramamos por todas as vezes que preferimos não ouvir e não querer saber. A história que vieram contar não depende da nossa boa vontade. Elas vão fazer-se ouvir, quer queiramos, quer não. E o seu aviso é claro: se aquele antigo teatro não servir para esse propósito, pois que se deite abaixo, e se construa outro de raiz.
Aurora Negra é uma peça repleta de camadas, sem nunca perder coerência e propósito. É um espetáculo tão intimista, quanto confrontacional, que tanto trata da violência, como do orgulho de quem a enfrenta. Que vive tanto de narrativas de vida brilhantemente trabalhadas, como de momentos de fuga, êxtase e libertação. Não há nada de previsível ou de expetável em Aurora Negra.
O desafio de nos convocarem a ouvir com que as três atrizes abrem o espetáculo é estruturante de toda a narrativa. Em seguida, começam a desvendar uma outra história, ausente dos palcos, dos livros e da televisão, que começa com a presença negra no território que hoje é Portugal, ainda no século XII, isto embora nos manuais escolares as pessoas negras apenas sejam representadas como escravas, semelhantes a mercadoria, desprovidas de história, biografia, agência e cultura.
É triste, mas ao mesmo tempo sintomático, que tão tardiamente esta história chegue a um Teatro Nacional. Portugal fez uma revolução que pôs fim a uma ditadura de 48 anos. Essa revolução não foi feita apesar das guerras de libertação africanas, mas também por causa delas. Se em 1974 o país derrotou o fascismo, foi porque os movimentos de libertação nacional em Angola, Cabo Verde, Guiné, São Tomé, e Moçambique desafiaram a ordem colonial que o sustentava. Essa herança nunca foi reconhecida, com consequências políticas e culturais até aos dias de hoje.
O Portugal saído da revolução democratizou-se, desenvolveu-se, mas nunca verdadeiramente se descolonizou, um D dos desígnios da Revolução que se perdeu. O passado colonial não foi discutido e a narrativa do Estado Novo nunca foi questionada. Isto significa que a história que Portugal conta sobre si continua a ser a mesma que era contada pelo fascismo: o elogio acrítico da expansão marítima, a excecionalidade do colonialismo português, o desígnio humanista da presença portuguesa em África. É isto que se continua a ensinar nas nossas escolas, fazendo tábua rasa sobre a escravatura, o trabalho forçado, os massacres e o extermínio cultural.
A persistência dessa narrativa conduziu à invisibilidade das pessoas negras e afrodescendentes no Portugal democrático. A mesma democracia que só foi possível graças aos movimentos de libertação africanos, enclausurou os seus filhos e netos em guetos, e nunca quis discutir porque é que em Portugal as pessoas negras são sempre vistas como não sendo de cá, quase representadas como uma ameaça.
Aurora Negra conta uma parte da história que a democracia portuguesa tem ocultado. Para o fazer, as três atrizes não precisaram de ir muito longe: bastou darem voz às suas próprias mães, à sua própria história. É através delas que conhecemos o trabalho invisível de quem sai de casa ainda o sol não nasceu, e chega a casa já o sol se pôs. A história de quem percorria dezenas de quilómetros a pé, entre a casa e os vários trabalhos, porque o dinheiro mal dava para sobreviver. A história de quem, à saída do aeroporto em busca de uma vida melhor, é tratado como invasor, ou até como potencial traficante de crianças. O que ali nos contam é a história de um país que se “modernizou” à custa dos corpos suados e esgotados, que continuam invisíveis para a maioria.
Mas esta história que nos contam, e isto é muito importante, nunca é representada sem que a ela seja contraposta uma outra narrativa: a de quem, apesar tudo isto, continua a ter orgulho, a semear sonhos, a dançar, a partilhar e a construir. Temos sempre em cena, lembrando Conceição Evaristo, a vida da gente que combinou não morrer. Apesar de cinco séculos de violência e invisibilidade, ainda aqui estão, orgulhosas do seu corpo, da sua ancestralidade, da sua família, da sua luta, do seu prazer e da sua felicidade. Os seus corpos são a revolução. Aurora Negra vem de um lugar de orgulho, de um lugar de construção. Aurora Negra é um devir.
Voltamos à pergunta que percorre a peça. Estaremos nós disponíveis para ouvir? Para sermos aliados de um outro futuro? Isabél Zuaa, Cleo Tavares e Nádia Yracema fazem-nos um teste decisivo, e não têm receio da força do murro que vão dar ao público que as ouve. A certa altura simula-se uma entrevista de trabalho, com a voz de uma entrevistadora [Inês Vaz] que vai vomitando um chorrilho de estereótipos e preconceitos sobre os seus corpos e a sua identidade “exótica”. O público vai rindo, rindo muito, perante o ridículo da entrevistadora. Mas a cena prolonga-se, estende-se, parece que não vai acabar nunca. Ao mesmo tempo, as três atrizes vão mudando as suas caras, os seus corpos, tornando-se cada vez mais visível o seu desconforto e a sua raiva. Os risos divertidos do público, que tratou a cena como se ela fosse apenas humor, vão dando lugar a um silêncio comprometedor e desconfortável. Porque riamos nós daquela violência? Nesse momento, uma pergunta latente assombra todo o público: Estaremos nós verdadeiramente a ouvir?
Talvez Isabél Zuaa, Cleo Tavares e Nádia Yracema nos perdoem novo deslize, mesmo que não haja nelas qualquer sinal de condescendência. Todas e todos nós temos de ser responsabilizados, porque o nosso silêncio tem sido cúmplice e parte do problema. Estar à altura da aliança que nos propõem exige um compromisso inequívoco da nossa parte: falar menos, e ouvir mais. Saber escutar verdadeiramente.
A Aurora Negra chegou e a sua história não mais será adiada. O “black out” vai dar origem ao “black in”. A casa é delas, esta e todas as outras que falta ocupar. À Isabél Zuaa, à Cleo Tavares e à Nádia Yracema o meu muito obrigado por nos convocarem para este encontro, por nos proporem esta aliança e por nos convidarem para um outro futuro. Esperemos, desta vez, estar à altura da vossa generosidade.
Por defeito profissional, o João Mineiro escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
Foto © Felipe Drehmer
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