Beijo Feroz (Alfaguara, 2019) de Roberto Saviano, é a continuação da história começada pelo autor em 2016, no romance Os Meninos da Camorra, também publicado pela Editora Alfaguara, em 2018. No entanto, para entendermos a essência desta verdadeira “missão de vida” assumida por Saviano, devemos recuar até ao ano de 2006 e ao romance Gomorra – obra em que o autor expõe os meandros mais íntimos da Camorra, organização criminosa nascida, tal como Saviano, em Nápoles e ligada à Máfia Siciliana – cuja publicação lhe granjeou ódios de morte.
Em Os Meninos da Camorra (adaptado ao cinema por Claudio Giovannesi, com o próprio Saviano a colaborar na escrita do argumento), o autor inicia a história de um grupo de amigos adolescentes que vivem num bairro de Nápoles, que calçam sapatos de marca, percorrem as ruas da cidade nas suas motas e têm tatuados nos braços os nomes dos seus gangues. A acção deste romance tem diversos protagonistas, com especial destaque para Nicolas, o “Marajá”, um jovem de 16 anos mas já o “Homem” do grupo, da zona e da família. São jovens sem rumo que, não querendo trabalhar para prover ao seu sustento como os pais, ainda assim querem ter tudo. Ora, em Nápoles tal é possível para aqueles que escolherem o lado da Camorra e que não tenham medo de matar nem de morrer.
Percebendo desde muito cedo que o crime organizado lhes traz dinheiro e poder, os jovens começam a treinar as suas habilidades com armas de fogo e rapidamente se estreiam a fazer serviços para os chefes da Camorra. O dinheiro corre em abundância e a vida de uma pessoa passa a valer pouco mais do que nada. Os adolescentes arriscam cada vez mais e sentem-se capazes de fintar a própria morte. Ao mesmo tempo que vão ganhando influência e poder, a lista dos seus inimigos cresce e os jovens de predadores passam a presas.
Em Beijo Feroz, Saviano leva-nos para a intimidade deste grupo de jovens. Dá-nos uma janela com vista para a organização, as suas estratégias e actuação, dominadas por aspirações e determinações de sobrevivência. O autor traça um retrato, que sentimos fiel à realidade, das relações mafiosas em Nápoles, envolvendo o comércio de drogas, a marcação e preservação de territórios, dando-nos, em certa medida, uma visão humanizada da crueldade. O retrato assim traçado pelo autor engloba as ligações familiares e as de negócio (com especial relevo para as relações intergeracionais de poder e a hierarquia de informação, influência e decisão), os códigos de comunicação, rituais e simbologia variada, quer ao nível comportamental, quer da imagem.
Desde Outubro de 2006, que Saviano vive sob proteção policial, no seguimento de ameaças de morte feitas pelos gangues que denunciou no livro Gomorra. No ano passado, o ministro do Interior de Itália, Matteo Salvini, líder da extrema-direita, anunciou ter apresentado queixa por difamação contra Roberto Saviano, o seu crítico mais ácido. Antes disso, Matteo Salvini já tinha ameaçado Saviano com a suspensão da proteção policial que lhe está atribuída.
“O passado não se pode mudar”, afirma um dos protagonistas do livro, expressão que bem poderia ter sido proferida pelo próprio Saviano, numa qualquer entrevista. Um passado que testemunhou, que corajosamente retrata e que o leva a viver refém dessa coragem, nas suas próprias palavras, “como se fosse um doente terminal”.
“De Nápoles ninguém se pode ir embora. Pode emigrar para a Austrália, passar a ser criado de cangurus e lançar o laço, mas carrega essa origem como um emblema. A dificuldade em distanciar-se porque se fica ligado à adrenalina e à identidade, mas também porque os outros não os deixam desligar-se. Uma ligação para a vida, dure que tempo durar.”
https://youtu.be/wLDCoPw0idc
Mais recensões/crítica literária AQUI