Com encenação de Nuno Cardoso, nesta nova produção da Ao Cabo Teatro, Yasmina Reza chega-nos em tradução de Alexandra Moreira da Silva, depois do êxito, ainda em curso, de Deus da Carnificina (2006). Quem conhece esse, até agora, opus magnum da escritora francesa, reconhece-lhe o estilo neste Bella Figura. Ainda que Nuno Cardoso lhe tenha dado um toque menos naturalista que as encenações de outras bandas, o quadrado asfixiante das vidas quotidianas do nosso tempo mantém-se como fronteira do espaço cénico. Parece-nos, aliás, que o que é diminutivo nos adereços (note-se, em especial, o carro vermelho, cenário primordial despachado para o espaço do acessório) é aumentativo desse “teatro de nervos”, comummente descritivo da obra de Reza, que os cinco atores em palco souberam honrar eximiamente.
Bella Figura parte de dois eventos que se cruzam: o jantar romântico de Boris e Andrea, e o de aniversário de Yvonne, acompanhada pelo filho, Eric, e a esposa, Françoise. A interseção das duas situações dá-se, já profetizando o que aí vem, através de um atropelamento. Enquanto discutem dentro do carro, a caminho do restaurante, Boris e Andrea acabam por quase matar Yvonne. A partir daqui, os quatro e a velha aniversariante seguem juntos rumo ao mal-estar: Françoise é amiga próxima de Patrícia, esposa de Boris. A traição, conjuntura já de si portadora de tensões entre Boris e Andrea, passa a estar no centro da crítica de Françoise, “reta como um garfo espetado”. O marido, Eric, visita constantemente o telemóvel, mensageiro de negócios. Tenta aconselhar Boris no seu: marquises. Uma promessa de prosperidade que afinal não se confirmou. Como a bela figura que, em geral, todos ali fazem. Menos a velha Yvonne, em registo cómico. Ou será ao contrário?
Lentamente, entre frivolidades gastronómicas – a ideia era só mesmo ir ao restaurante comer umas ostras – explodem microssituações que denunciam a feia figura. Tão enorme e devoradora por dentro, que é preciso deixá-la cair. À máscara, à roupa, à tensão, aos nervos. No final, o quadrado sem saída sartriano que é o palco, é o espelho da situação. O caos, a sujeira, a desordem. No meio, a imaginação de encenador e atores perante um quadrado que se torna flexível, que se vira de um lado para o outro sem se mexer, que nos ofusca, por vezes, e nos torna voyeuristas, em outras.
Cardoso é exímio em fazer muito com pouco. Algumas fórmulas anteriores repetem-se, reajustando-se ao objetivo do momento. O computador portátil fora do quadrado, por exemplo, dá a música necessária, em sentido lato. You can’t always get what you want, dos Rolling Stones, marca as pausas e a frustração do grupo, assim como o coaxar das rãs ou o esvoaçar de mosquitos marcam a perturbação neurótica tão controlada pela vontade de fazer bela figura. Não conseguimos ser sempre, efetivamente, aquilo que queremos ou que desejamos parecer. O resultado está ali, e recomenda-se.
Nuno Cardoso despede-se, com Bella Figura, da colaboração enquanto encenador com a Ao Cabo Teatro, para abraçar a direção artística do Teatro Nacional São João em Janeiro de 2019. Ainda antes disso, há apresentação no Teatro Aveirense no próximo dia 9 de novembro.
Foto © João Tuna
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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