Bem Bonda. Muitas e muitos de nós nunca teremos ouvido esta expressão oriunda da Beira Baixa e que dá título ao novo álbum de Criatura, essa banda que se fez um bando repleto de músicos, poetas e artistas de variedades. Como nos dizem na sua página, Bem Bonda é uma expressão que representa um resgate da ancestralidade linguística beiroa: «expressão mutável, dependente das gentes e dos lugares que dentro do mundo dos significados nos lembra não só que “já chega”, como também que, “como se não bastasse”, “um mal nunca vem só”».
Em certo sentido, Bem Bonda é uma expressão que resume a identidade, o posicionamento e o compromisso da Criatura. Este bando de artistas, como gosta de se autodefinir, revela-se esteticamente a partir da construção de um constante e profícuo diálogo entre a tradição e a modernidade, a oralidade e a palavra escrita, as sonoridades populares e o ecletismo musical, o passado e o futuro. Parece não haver dicotomias insuperáveis ou intransponíveis na música deste coletivo, mas antes diálogos, conexões e ‘conflitos’ de onde emerge uma música realmente única e distinta. A expressão Bem Bonda representa, portanto, essa sua vontade incessante de procurar as raízes profundas dos sons, das imagens, das histórias e das palavras, ao mesmo tempo que lhes conferem novos significados e olhares possíveis, trazendo-os à presença e inscrevendo-os no presente.
Este segundo álbum da Criatura sucede-se a Aurora, editado em 2015. A surpresa desse primeiro trabalho criou expetativas, que o coletivo reforçava nas suas poderosas performances ao vivo. Bem Bonda vem confirmar o que se suspeitava: a Criatura é mesmo um dos melhores e mais importantes coletivos artísticos da música portuguesa contemporânea, pela sensibilidade poética da sua música, pela riqueza sonora das suas composições e pela pertinência das estórias que narram. Vamos por partes.
Em Bem Bonda há uma ancoragem vital e quase carnal à poesia no seu sentido amplo e emergente. Uma poesia que está na palavra, tanto como no som. Em temas como “Bem Bonda”, “O Padeiro – Parte 2” ou “À mãe”, a palavra falada e cantada é profunda e tocante. São poemas que ganham corpo na música, mas que podem existir para lá dela, sem perderem a sensibilidade e a intimidade que os qualifica. Mas também há temas exclusivamente instrumentais, onde a poesia acontece na e pela música. É o que sucede em “O namoro”, “O encanto” ou “A Festa do Medo do Gaiteiro”, onde o som convoca a imaginação, a partilha de um sentimento prescinde da palavra dita, nunca deixando de alimentar um diálogo com quem escuta. Até porque a sua riqueza sonora é uma espessura firme que se faz discurso.
Ora essa riqueza sonora revela-se em Bem Bonda como um verdadeiro mosaico estético, uma espécie de tapeçaria sonora que nunca perda unidade e coerência. É claro que há uma dimensão quase tutelar das raízes de música tradicional portuguesa, que deixaria orgulhoso quem, como Giacometti, perseguia a arqueologia dos sons e dos seus significados sociais e culturais. Entre as estórias e os sons, parece que também passaram pelo estúdio o José Afonso, trabalhando com o magnífico Coro dos Anjos, o José Mário Branco na orquestração sonora e no uso da palavra, o Fausto na sensibilidade da estória contada ou até o Sérgio Godinho, que muito se divertiria com a irónica desbunda que é o tema “Da Praxe”.
No entanto, e isto parece-me o mais importante, estas figuras cuja influência se poderá notar na música da Criatura nunca dominam completamente o imaginário de quem escuta. Serão inspirações para um diálogo e uma aprendizagem, mas da qual igualmente se emancipam para falar com a sua própria linguagem. É por isso que esta filiação na tradição e na riqueza dos cantautores portugueses se combina com múltiplas outras influências, referências e texturas. Um exemplo paradigmático é o tema “Lobbysómem”, um dos melhores do álbum, onde, às páginas tantas, parece que viajamos até aos Balcãs, como se estivéssemos num filme do Kusturica, e onde também se nota o groove d’ Os Compotas, a banda funk onde o projeto Criatura terá começado a ganhar forma. Noutros temas, como “A Festa do Medo do Gaiteiro”, percebe-se igualmente a influência do afrobeat e da música de influência árabe e tuaregue, oferecendo-nos uma viagem digna de ser partilhada numa pista de dança muito em breve. Parece ainda haver neste álbum uma influência de um certo rock sinfónico e progressivo, em temas como “Da Praxe”, onde a sonoridade nos convoca para uma espécie de mistura criativa entre Gentle Giant e 10.000 anos depois entre Vénus e Marte, com referência aos Tantra ou à Banda do Casaco.
Para além da sensibilidade poética e da riqueza sonora, Bem Bonda é ainda fértil nos assuntos que traz à mesa. Há um belíssimo tríptico sobre amor, onde o marialvismo é substituído pelo enamoramento, o embaraço e a imaginação. No entanto, é na crítica social fina e irónica, divertida e inquieta, que álbum é mais desafiante. Em “Lobbysómem”, por exemplo, lembra-se essa figura sinistra que «sai de noite e de dia, esteja a lua cheia ou vazia», «puxa o lustro ao pêlo, lima a unha / deixa a porta aberta, mete a chuna». Em “Da Praxe” há a dose de auto-ironia descomprometida, uma pândega onde nos rimos de nós próprios, lembrando as vezes que fomos à catequese, à praxe e à faculdade pela simples arte da imitação, para «fazer parte da tradição». E, claro, no tema “Bem Bonda” onde se canta que «o pão está caro / quanto mais a fome”, lembrando que “e agora se é hora / se a hora te diz / outrora só chora / só chora quem quis / que a Aurora é agora / bate o pé e diz: Bem Bonda! Bem Bonda!»
O José Mário Branco nas suas últimas entrevistas e conferências costumava dizer que a música tinha três pilares fundamentais: a estética, a técnica e a ética. Por outras palavras, o belo, o ofício e o sentido profundo e implicado que se dá à estética e à técnica. No campo da indústria cultural, nem toda a música se move por este triplo compromisso. Essa consciência aguda do tempo vivido, das raízes e da responsabilidade, nem sempre é compatível com agendas que se movem por outros valores. Não é esse seguramente o caso da Criatura, que é fiel herdeira dessa tradição que faz da música um compromisso com o mundo e com a vida. É um prazer ouvi-los e que seja longa a sua jornada.
O álbum pode ser encontrado em: www.bembonda.pt
A Criatura é composta por:
Acácio Barbosa – guitarra portuguesa
Alexandre Bernardo – bandolim, guitarra acústica, cavaquinho
Cláudio Gomes – trompete
Edgar Valente – voz, piano, teclados e adufe
Fábio Cantinho – bateria
Gil Dionísio – voz e violino
Iúri Oliveira – percussões e Mbira
João Aguiar – guitarra eléctrica
Paulo Lourenço – baixo eléctrico
Ricardo Coelho – gaita de foles, flauta transversal, ocarina e palheta beiroa
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Belo resumo deste fantástico “Bando de Músicos” que nos inspira e lembra que ainda há MÚSICA ????????