home Antologia, LITERATURA Benjamim – Chico Buarque (Companhia das Letras, 2017)

Benjamim – Chico Buarque (Companhia das Letras, 2017)

O pelotão estava em forma, a voz de comando foi enérgica e a fuzilaria produziu um único estrondo. Mas para Benjamim Zambraia soou como um rufo, e ele seria capaz de dizer em que ordem haviam disparado as doze armas ali defronte. Cego, identificaria cada fuzil e diria de que cano partira cada um dos projécteis que agora o atingiam no peito, no pescoço e na cara. Tudo se extinguiria com a velocidade de uma bala entre a epiderme e o primeiro alvo letal (aorta, coração, traqueia, bulbo), e naquele instante Benjamim assistiu ao que já esperava: sua existência projectou-se do início ao fim, tal qual um filme, na venda dos olhos.

Assim começa Benjamim, escrito por Chico Buarque, homem de múltiplos talentos, que dispensa apresentações. Compositor, cantor, actor, dramaturgo e poeta, mais conhecido por ser um dos maiores nomes da música popular brasileira, é também escritor e, ainda que a sua produção literária não seja muito extensa (cinco romances publicados entre 1991 e 2014), foi solidamente construída. Benjamim, publicado em 1995 e que chegou às nossas mãos na reimpressão de 2017 da Companhia das Letras, é o seu segundo romance.

Livro de estrutura circular, narrado na terceira pessoa, em flashback e em dois tempos – entre a contemporaneidade e os anos da ditadura militar brasileira (de 1963/64 a 1985) – tem como protagonista Benjamim Zambraia, cuja degradação emocional conduziu à  degradação física e profissional. Perturbado pela morte de Castana Beatriz, ex-namorada e então militante de esquerda que morre fuzilada, culpa-se pela tragédia. Nos anos 90, encontra em Ariela Masé, que julga ser filha de Castana, a esperança de reconstruir o seu paraíso perdido.

Na primeira página do livro, temos o desfecho da narrativa. Naquele instante, Benjamim tem a oportunidade de rever os melhores e os piores momentos da sua vida. Ex-modelo fotográfico, nunca casou nem teve filhos, e reformou-se aos 40 anos, após transformar todas as suas poupanças em ouro, que distribuiu pelos meses referentes à sua expectativa de vida (80 anos). Benjamim vê na câmara uma extensão de si e através dela observa o mundo exterior:

“Adolescente, Benjamim adquiriu uma câmera invisível por entender que os colegas mais astutos já possuíam as suas. O equipamento mostrou-se tão providencial quanto um pente no bolso, e a partir daquele dia a vida dele tomou novo rumo.” (pág. 10).

No momento da sua morte, Benjamim verá, pela primeira vez, o filme da sua vida, sem lente protectora, filtros ou jogos de luzes, confessando a angústia de conhecer o verdadeiro homem que foi.

As narrativas de Chico Buarque, carioca de gema, têm em comum o espaço do enredo: o seu Rio de Janeiro. A cidade é-nos apresentada de tal forma que nos sentimos familiarizados e íntimos conhecedores do ambiente. Neste romance, aparece-nos como espaço de diálogo entre imagens do presente e do passado: os mesmos lugares frequentados por Benjamim durante toda a sua vida são agora visitados por Ariela, que parece dar brilho às imagens velhas e esquecidas. No entanto, esta duplicação temporal, quase simétrica, da narrativa, confere a Benjamim uma lógica interna difícil: fazendo uso da técnica cinematográfica, o autor dispõe os personagens – os principais e alguns dos secundários – de modo a que reflitam em espelho ou em paralelo outros personagens – Benjamim actual/Benjamim aos 25 anos, Castana Beatriz /Ariela Masé, Prof. Douglas /Alyandro – num movimento desnorteado e constante, a roçar o esquizofrénico. Desta forma, passado e presente confundem-se, num relato que muitas vezes baralha o leitor, um verdadeiro quebra-cabeças, tal a ambiguidade, os devaneios e a alucinação do protagonista.

A história contada em Benjamim fez-nos reflectir sobre a condição social, afectiva e psicológica da sociedade contemporânea, com o protagonista a personificar a perda e as esperanças vãs, mas não é das narrativas mais fáceis de se ler. Se há obras literárias para determinadas faixas de maturidade, esta é uma delas. Qualquer esperança de leveza fica-se pelo tamanho do livro. A trama é densa, cheia de pormenores, referências, ritmos e rimas, e pode mesmo deixar atordoado o leitor mais desatento. Benjamim é poesia em prosa, lirismo no seu estado mais puro, destinado a fãs de uma leitura mais consistente, mais adequada ao crepitar da lareira do que ao som das ondas.

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