home LP, MÚSICA Bia Ferreira – Musicbox, 12/11/2019

Bia Ferreira – Musicbox, 12/11/2019

Bem-vindas ao culto da igreja lesbiteriana. A pastora chama-se Bia Ferreira e para o ritual traz-se a si própria, ao seu corpo e à sua voz, acompanhada por uma guitarra rebelde. As participantes vão entrando na sala escura do Musicbox, em Lisboa, e tudo se prepara para o que se vai seguir: um autêntico ritual de expurgação coletiva do machismo, do racismo e do preconceito e uma poderosa celebração coletiva da resistência popular, feminista e negra.
Bia Ferreira entra em palco, sorri para uma sala cúmplice e expectante. À capela, impõe um silêncio transversal que percorre a sala. “Brilha, minha guia” abre esta hora e meia que se antecipa será uma noite para gritar, mas também para ouvir. Lugar de fala e ponto de escuta. Uma hora e meia eletrizante e reflexiva, com um público rendido a esta missionária da revolução, que tão bem personifica o Brasil que resiste.
Antes da efervescência do culto, Bia Ferreira impõe as regras: «neste espaço não vão ser permitidas quaisquer atitudes racistas, homofóbicas, transfóbicas ou sexistas, fiquem atentas», reitera. Regras aceites, a compositora apodera-se da sua guitarra e tudo se rende às suas palavras de amor e revolução. Tudo se subordina a uma música viva e emancipada, que é forma de comunicação empática, um lugar de fala e apelo à informação e à dissidência.
O concerto percorre o seu álbum-ritual: Igreja Lesbiteriana, Um Chamado. Os fiéis cantam todas as letras, balançam os corpos e sorriem muito. Em “Não Precisa Ser Amélia” canta-se, em uníssono, pela «tia silenciada», a «mina que é de quebrada/que é violentada e não pode estudar», pela «preta objetificada/gostosa, sarada, que tem que sambar», pela «preta, indígena, trans, nordestina» e toda a gente que não nasce feminina, mas que se torna mulher. Em “De dentro do Ap” confronta-se a hipocrisia privilegiada de quem se diz da «esquerda feminista», mas cuja «fala não condiz com a sua conduta». Em “Levante a bandeira” canta-se em celebração do amor e apela-se a que «ninguém se meta no meio», pois foi «o belo que definiu o feito para se beneficiar».
O culto segue, extasiante, e a meio do concerto, já com Doralyce em palco, faz-se um balanço intermédio ao som de “Sharamanayas”: «O culto tá bonito todo mundo abençoado/Se o movimento cresce fica tudo dominado/Declaro vão cair todas as portas dos armários/Primavera solar a queda do patriarcado». O culto estava mesmo bonito e não era só pela mensagem empática que as duas cantoras insistiam em fazer passar. Estava bonito, também, porque a música não era um pormenor neste ritual.
A música de Bia Ferreira não é um apêndice, lateral, à mensagem política que ela vincula em cima do palco. Ela eletriza os corpos, conecta-os, fá-los mexer e refletir. A sua sonoridade é mundividente, diversa e sem rótulos. A compositora chama-lhe “Música de Mulher Preta”, com alguma razão, já que o seu universo musical atravessa diversos estilos e formas de expressão musical cantada por pessoas negras enquanto forma de expressão e de tomada da palavra. Por isso, a sua música varia entre referências sonoras do soul e do reggae, entre o r&b e o rap, passando pelo beatbox ou a spokenword. Tudo se conjuga e unifica na sua voz grave, forte e segura. E a palavra, sempre a palavra, que acompanha a sua guitarra rebelde.

Com os seus maiores sucessos “Cota não é esmola” e “Miss Beleza Universal”, Bia Ferreira e Doralyce despedem-se de Lisboa, com um Musicbox absolutamente rendido às suas palavras e à sua música. Apelam a que abandonemos o nosso silêncio e tomemos palavra em todos espaços da nossa vida. A cantora sai de cena e há um ambiente fortíssimo na sala. Toda a gente sorri pelo que ali viveu. Ninguém sai como entrou depois daquela hora e meia de culto.

Por defeito profissional, o João Mineiro escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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