Onde começa o despotismo e a tirania? Onde nasce a prepotência e a dominação? Como se constituem e reproduzem relações de poder assimétricas? De que matéria é feita essa pulsão mais consciente ou mais tácita para o domínio e para a sujeição? E como conseguimos contrariá-la, subvertê-la ou destituí-la? Como resistir e em nome de princípios? Calígula morreu. Eu não, em cena no Teatro Nacional D. Maria II até 4 de julho, percorre todas estas questões, através de uma encenação que é um campo de trabalho e reflexão coletiva, e ao mesmo tempo um laboratório de respostas possíveis, em busca de outro futuro.
No começo da peça um teatro fechado e uma companhia abandonada e expectante pelo regresso salvífico e messiânico de um encenador desaparecido e perdido quanto ao sentido da vida e do futuro. O seu regresso, meio triunfante meio absurdo, antecipa grandes feitos: a reabertura do teatro, a criação da mais perfeita peça, a antecipação da mais longa digressão, a busca pela realização do impossível. Só que essa procura obsessiva pela perfeição e pelo sucesso vai progressivamente transformando o sentido das relações humanas, ganhando contornos crescentemente autoritários. Um a um, todos os princípios éticos vão desaparecendo, sempre em nome de uma grande conquista que se antecipa. Calígula torna-se, então, uma reflexão sobre o poder, a dominação e as possibilidades de resistência. Nesse processo, o que torna brilhante a encenação de Marco Paiva é o facto da reflexão ficcional e artística se entrosar estrutural e naturalmente com as próprias escolhas cénicas e com o próprio encontro humano que a peça propõe. Isto é, Calígula exercita o princípio de que a forma é também o conteúdo, sendo a sua indissociabilidade constituinte da própria interpretação e ação sobre o mundo. Calígula não é uma peça de teatro para pensar as relações de poder que acontecem fora do espaço cénico. É, pelo contrário, um laboratório ao vivo onde se pensa o teatro e o mundo, enquanto sobre eles se atua.
No palco um elenco de magníficos intérpretes, com e sem deficiência e surdos. Atores e atrizes a comunicar em português, castelhano, língua gestual portuguesa e língua gestual espanhola. Corpos diversos, vozes múltiplas, línguas plurais. Em palco, o absolutismo e as possibilidades da sua subversão, assente nos próprios meios do espetáculo: a diversidade, a inclusão e a experimentação da liberdade enquanto prática política concreta num momento de criação artística. De um lado, o impulso cíclico do poder, tratado de forma ficcional. Do outro, os caminhos da sua disputa, a partir da celebração da diversidade, da inclusão e da partilha humana com que se ocupa o palco.
Todas e todos podemos ser Calígula, capazes de pisar as fronteiras da ética e da decência quase sem darmos por isso, perdendo a noção do comum, da empatia e da importância do questionamento crítico da nossa relação com o mundo e com os outros. No entanto, mais importante que isso, é o facto de todas e todos nós estarmos também em condições de matar o Calígula em potência, questionando as relações concretas em que ele emerge. Desta forma, a peça acaba por nos propor uma aposta fundamental: a ideia de que, contra todas as probabilidades, e perante a mais variadas vicissitudes, é possível experienciar na plenitude a potencialidade do encontro humano que supera todas as tendências para o nepotismo.
Calígula morreu. Eu não torna-se, então, uma proposta política, no sentido amplo em que a política pode ser entendida, colocando o teatro como campo de possibilidade para o exercício da diversidade e da experimentação generosa do encontro. Um espaço para a concretização da empatia a partir de uma nova linguagem comum, que se constitui a partir da multiplicidades de línguas, vozes e corpos. Assim, essa diversidade, que podia ser vista como um obstáculo para público, rapidamente se torna algo natural e belo. Passados poucos minutos da peça começar já estamos todas e todos a comunicar em conjunto, a partir de uma nova linguagem partilhada que se instituiu. O som, a iluminação, a cenografia, a interpretação, tudo concorre para que essa nova linguagem comum seja o reflexo da diversidade das línguas de partida, nunca as anulando. O comum é o fruto que nasce dessa pluralidade de experiências e que ao mesmo tempo as celebra. A proposta é estarmos com os outros porque eles nos colocam a pensar sobre esse encontro, sobre as nossas diferenças e sobre o espaço comum que elas podem construir. É um feito belíssimo que emociona toda a plateia.
Por tudo isto, quando a peça caminha para o fim, o debate ético e moral sobre os meios a mobilizar para contrariar o Calígula-tirano resolve-se não através do recurso à violência, mas à mobilização do encontro que leva o tirano a ser confrontado com a impossibilidade do uso do seu poder, agora contrariado pelo coletivo que força o seu desaparecimento de cena. Um desaparecimento que não tem nada de épico, mas de natural, substituído pelo triunfo de outras relações que se lhe sobrepuseram. É uma conquista com outras armas que ele não compreende nem domina, acabando por desaparecer, sem levar consigo os atores. Calígula morreu. Eles não.
Desta forma, quando chegamos ao magnífico monólogo final, emocionados com que ali assistimos, trazemos connosco os melhores ensinamentos do gesto artístico, político e poético que ali foi experienciado. A ideia de que o teatro não tem de ser apenas um campo da imaginação sobre o futuro, podendo ser já hoje, aqui e agora, esse futuro concretizado. A aposta de que não há impossíveis no encontro humano e de que o que se passa em cena pode ser uma experimentação para o que passa na vida fora dela. A lição de que quanto maiores são as diferenças maior é o potencial do encontro humano e da vida em comum. A prova de que o teatro pode quebrar as barreiras, não só as físicas, mas as impensadas, tácitas e simbólicas. A demonstração concreta que um teatro pode ser um espaço de maior horizontalidade e pertença coletiva, rompendo os padrões em que se reproduzem as desigualdades mais entranhadas no corpo social. Em suma, o ensinamento de que o teatro pode ampliar o campo de possibilidades do real, multiplicando vozes, corpos e experiências. De que o teatro não serve apenas para imaginar um mundo diferente, mas também para o construir aqui e agora.
Ficha Técnica
texto Clàudia Cedó
encenação Marco Paiva
com Ángela Ibáñez, André Ferreira, Fernando Lapeña, Jesús Vidal, Luís Garcia, Maite Brik, Paulo Azevedo, Rui Fonseca
cenografia José Luis Raymond
composição musical José Alberto Gomes
desenho de luz Nuno Samora
videoarte Cláudia Oliveira
assistência de direção Magda Labarda
intérprete de LGP Barbara Pollastri
produção Terra Amarela
coprodução Teatro Nacional D. Maria II, Centro Dramático Nacional
apoios Embaixada de Espanha, AECID – Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento
Foto © Luz Soria
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