Campo de sangue é um lugar em Jerusalém onde os estrangeiros eram sepultados, comprado com o dinheiro que Judas tinha recebido para trair Jesus e que entregou a sacerdotes, com remorso, antes de se enforcar. É também o título do primeiro romance de Dulce Maria Cardoso, uma das vozes femininas mais originais da atualidade, cujo Retorno trouxe de volta ao mercado os seus livros anteriores, agora reeditados pela Tinta-da-China: o fortíssimo Os Meus Sentimentos e este Campo de Sangue, publicado pela primeira vez em 2001 e vencedor do Prémio Acontece, um romance complexo e cuja atenção ao detalhe já fazia adivinhar que Dulce Maria Cardoso não se ficaria pela estreia. Das quarto mulheres que compõem a ação do livro, encontram-se ecos nos outros romances de Dulce e as suas narrativas fazem-se normalmente no feminino. A Violeta de Os Meus Sentimentos (uma das personagens femininas mais transgressoras da literatura das últimas décadas) e Eliete, a quem Dulce deu vida mais recentemente e que vai voltar em breve para mais dois volumes, partilham a complexidade reservada às personagens masculinas dos grandes romances e esta vontade em agarrar o que é proibido está ainda presente no que talvez seja o romance mais emblemático de Dulce, e certamente o mais traduzido e premiado: O Retorno, esse olhar para a questão das ex-colónias e a relação ambivalente de Portugal com o seu caótico processo de descolonização (e as suas réplicas, que ainda marcam discursos paternalistas e racistas em relação ao Outro, a qualquer outro), uma temática que continua pautada por silêncios e interditos.
A ação de Campo de Sangue é assustadoramente banal e mundana. O nível de detalhe é exasperante por vezes, como quando se descreve uma mãe que come de boca aberta, certamente uma das ações mais abjetas que um ser humano pode levar a cabo, como se a escritora fosse alternando, com olho clínico, entre zoom in e zoom out (não surpreende que o livro vá ser em breve adaptado ao cinema, como já foi confirmado). Há um crime e amantes, temas que preenchem capas de jornal, aqui tratadas de forma brutalmente humana e próxima, enquanto a narrativa escorre lentamente, como um “ato de esperar” (17). É o homem, cuja vida se resume a gastar tempo e a viver em “medo cronometrado” (47), quem comete o crime – ou pelo menos somos levados a crer que sim – o mesmo homem que, quando corta o pé num vidro, fica enojado com o seu próprio sangue e tem pavor de ver o seu corpo invadido pelas picadas de insetos. Mas são as mulheres que prestam depoimento quando este é acusado, algumas incrédulas, outras perfeitamente convictas da sua culpa, numa criação de narrativas pessoais do mesmo evento, que pretendem recuperar ou esconder factos e fazer sentido de uma ação que parece estranha quando enquadrada no comportamento do homem.
Campo de Sangue é uma análise das relações interpessoais, do quanto escondemos uns dos outros e da descrença que surge quando alguém age inesperadamente e fora da sua natureza. É o retrato de um homem espelhado nas suas reações ao crime e nas mulheres que o rodeiam: a mãe, a ex-mulher, a senhoria, a relutante futura mãe do seu filho. “Quem é não se choca com uma coisa destas, um crime desta natureza, quem não se choca com um crime sem explicação, há crimes que se percebem mas este não tem explicação” (81-2), pergunta a senhoria, ao mesmo tempo que presume que conhecia desde o início o potencial violento do homem.
Estas mulheres “se por acaso se encontrassem na rua não se cumprimentariam” (11) e as suas vidas apenas se cruzam através do homem, que, à excepção de Eva, a amante (e a primeira mulher, aqui e na Bíblia) são anónimas, que habitam espaços metonímicos e poderiam ser de todo o lado e de lado nenhum. Conhecemos estas personagens, encontramo-las nestes mesmos espaços que ocupam no livro, lemos notícias sobre elas e julgamo-las distantes, menos humanas do que nós, mas “ninguém pode ter visto tudo sem ser igualmente culpado” (82) e em Campo de Sangue elas tornam-se mais próximas do leitor, também cúmplice, enquanto segue os indícios das personagens a tornarem-se falíveis, a errar, a ganhar corpo. O primeiro sangue derramado no livro não é o de um crime, mas de um vidro que se crava num pé num passeio na praia (de novo, um facto mundano). A prosa de Campo de Sangue inaugura um estilo que se tornou ainda mais experimental em Os Meus Sentimentos, em que a narrativa decorre numa espécie de fluxo de consciência, em que prosaico e lírico confluem numa evocação do quase sublime, lado a lado, como a “ligadura branca, quase bonita” (63) que esconde um corte profundo na carne.
Tal como aconteceu com o Meursault de Camus e o sol que o levou a matar, pois “com o calor há sempre quem mate por razões alheias à vontade” e “a beleza e a solidão são bons pretextos para se enlouquecer” (33), o homem com unhas de cão é aparentemente incapaz de matar, à semelhança do vidro que lhe cortou o pé, que “ao cair (…) produziu um barulho abafado, teve um cair quase mudo que se parecia com o de não existir (…) o pedaço de vidro apenas fez plof sem indicar a sua perigosidade, ninguém teme uma coisa que faz apenas plof quando cai num cesto de lixo” (63). Mas, tal como o perigo escondido que representa o vidro na areia da praia, também este homem, como todos os outros, é potencialmente violento e disruptivo .
Neste exercício de prosa delicada e detalhe minucioso sobre a natureza humana e os seus desvios – e tudo o que desconhecemos dos que nos são próximos – percebemos que apenas fica a descoberto “a verdade [que] se apresenta de várias formas (…) a verdade (…) que convém” (184).
Por defeito profissional, a Ana Carvalho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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