home LP, MÚSICA Cécile McLorin Salvant – Casa da Música, 20/03/2023

Cécile McLorin Salvant – Casa da Música, 20/03/2023

Cécile McLorin Salvant é o sonho materializado de qualquer melómano, em particular se for fã de jazz. O seu concerto na Casa da Música foi tudo menos uma performance para uma elite, como tão erradamente é rotulado o público deste estilo musical.
Com uma voz maleável e ampla, Salvant consegue transformar cada melodia numa aventura para o público e para os cúmplices que a acompanham em palco. Fá-lo calorosamente, fitando quem alcança com o seu olhar inquisitivo e desafiador. Quem ouviu os discos, cedo perde a esperança de os ver repetidos e a audácia chega ao extremo de excluir refrões inteiros em favor do sabor do momento, como fez em “Ghost Song”, tema título do seu homónimo álbum de 2022, multipremiado e aclamado pela crítica.

A sua prodigiosa técnica vocal é colocada ao serviço da divulgação e compreensão das letras que canta, abordando clássicos de Sting (“Until”) ou Gregory Porter e Kate Bush (“No Love” e “Wuthering Heights”, ausentes do alinhamento deste concerto) como se fossem músicas novas. Imbuída de uma liberdade total, guiada pela intuição e lendo a vibração do público para escolher in loco o caminho a seguir, é a personificação do jazz, mas também contaminada pela música africana, trovas da Idade Média, música popular brasileira ou folk americano.

Desta aparente miscelânea disconexa, nasce um espectáculo emocionante, em que, rodeada de uma banda sintonizada na sua frequência (quinteto clássico de músicos extraordinários: guitarra de Marvin Sewell, contrabaixo de Yasushi Nakamura, bateria e percussão de Keita Ogawa, piano de Glenn Zaleski), solta a voz na nossa direcção, passando por For One To Love (Mack Avenue, 2015), que lhe rendeu o primeiro Grammy da carreira, e o já referido Ghost Song (Nonesuch, 2022), base do alinhamento, para apresentar temas do mais recente e muito recomendável Mélusine (Nonesuch, 2023), que sai a 24 de Março. Neste conjunto de canções, mistura cinco originais com novas interpretações de composições que recuam ao século XII, cantadas maioritariamente em francês, mas também em crioulo haitiano, língua occitana (ou provençal) e inglês.

Pelo meio, uma tentativa bela e sincera de cantar a “Canção do Mar”, com a promessa de voltar com a versão completa bem preparada. Mas também uma música popular da Carolina do Sul a capella sobre um caso real de assassinato impune de uma mulher grávida, em plena boca de cena, numa demonstração de pura emoção e do poder da palavra.

Houve espaço para um pouco de música popular brasileira, com o fabuloso Keita Ogawa a tomar o pandeiro para dar o mote ao brasileiro perfeito de Salvant, evocando a “Flor de Lis” de Djavan em versão bilingue (“Upside Down” na versão inglesa). Ogawa protagonizou grandes momentos ao longo de toda a actuação, juntamente com o pianista Glenn Zaleski, claramente com a “mão quente”, para usar a gíria mais desportiva, ambos trocando olhares divertidos e em constante desafio mútuo, feito de solos desconcertantes e nuances quase imperceptíveis de toadas e harmonias, diálogo mudo que elevou a qualidade de todos os músicos, que riam diante de tanto virtuosismo, e da própria Cécile, testemunha com um ar aprovador e feliz, aproveitando cada deixa para novos rumos.

A vocalista, sempre comunicativa, enquadrava as suas escolhas com a preocupação de explicar o sentido das letras, revelando o alinhamento como um todo não só musical, como filosófico e de combate, pela perservação da memória e dos fantasmas da História (e das suas histórias), da importância da Palavra, mesmo nas composições já cristalizadas no cânone, com a disrupção necessária do activismo e da responsabilidade assumida com o orgulho de, pelo menos na duração de um concerto, alertar e elevar, numa partilha empática da sua mundivisão por via da Arte e da excelência na sua execução.
Memorável a todos os títulos.
Uma performer singular e fascinante.

Alinhamento (por ordem alfabética):

Dame Iseut
Dreaming of You
Doudou
Flor de Lis (Upside Down)
Fog
Ghost Song
I Lost My Mind
Obligation
The Trolley Song
The World Is Mean
(Canção folk Carolina do Sul)
Thunderclouds
Until

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