home LP, MÚSICA Cécile McLorin Salvant – Casa da Música, 20/03/2023

Cécile McLorin Salvant – Casa da Música, 20/03/2023

Cécile McLorin Salvant é o sonho materializado de qualquer melómano, em particular se for fã de jazz. O seu concerto na Casa da Música foi tudo menos uma performance para uma elite, como tão erradamente é rotulado o público deste estilo musical.
Com uma voz maleável e ampla, Salvant consegue transformar cada melodia numa aventura para o público e para os cúmplices que a acompanham em palco. Fá-lo calorosamente, fitando quem alcança com o seu olhar inquisitivo e desafiador. Quem ouviu os discos, cedo perde a esperança de os ver repetidos e a audácia chega ao extremo de excluir refrões inteiros em favor do sabor do momento, como fez em “Ghost Song”, tema título do seu homónimo álbum de 2022, multipremiado e aclamado pela crítica.

A sua prodigiosa técnica vocal é colocada ao serviço da divulgação e compreensão das letras que canta, abordando clássicos de Sting (“Until”) ou Gregory Porter e Kate Bush (“No Love” e “Wuthering Heights”, ausentes do alinhamento deste concerto) como se fossem músicas novas. Imbuída de uma liberdade total, guiada pela intuição e lendo a vibração do público para escolher in loco o caminho a seguir, é a personificação do jazz, mas também contaminada pela música africana, trovas da Idade Média, música popular brasileira ou folk americano.

https://www.youtube.com/watch?v=NJIxrqCyXXg

Desta aparente miscelânea disconexa, nasce um espectáculo emocionante, em que, rodeada de uma banda sintonizada na sua frequência (quinteto clássico de músicos extraordinários: guitarra de Marvin Sewell, contrabaixo de Yasushi Nakamura, bateria e percussão de Keita Ogawa, piano de Glenn Zaleski), solta a voz na nossa direcção, passando por For One To Love (Mack Avenue, 2015), que lhe rendeu o primeiro Grammy da carreira, e o já referido Ghost Song (Nonesuch, 2022), base do alinhamento, para apresentar temas do mais recente e muito recomendável Mélusine (Nonesuch, 2023), que sai a 24 de Março. Neste conjunto de canções, mistura cinco originais com novas interpretações de composições que recuam ao século XII, cantadas maioritariamente em francês, mas também em crioulo haitiano, língua occitana (ou provençal) e inglês.

https://www.youtube.com/watch?v=JHIbTPBjyVU

Pelo meio, uma tentativa bela e sincera de cantar a “Canção do Mar”, com a promessa de voltar com a versão completa bem preparada. Mas também uma música popular da Carolina do Sul a capella sobre um caso real de assassinato impune de uma mulher grávida, em plena boca de cena, numa demonstração de pura emoção e do poder da palavra.

Houve espaço para um pouco de música popular brasileira, com o fabuloso Keita Ogawa a tomar o pandeiro para dar o mote ao brasileiro perfeito de Salvant, evocando a “Flor de Lis” de Djavan em versão bilingue (“Upside Down” na versão inglesa). Ogawa protagonizou grandes momentos ao longo de toda a actuação, juntamente com o pianista Glenn Zaleski, claramente com a “mão quente”, para usar a gíria mais desportiva, ambos trocando olhares divertidos e em constante desafio mútuo, feito de solos desconcertantes e nuances quase imperceptíveis de toadas e harmonias, diálogo mudo que elevou a qualidade de todos os músicos, que riam diante de tanto virtuosismo, e da própria Cécile, testemunha com um ar aprovador e feliz, aproveitando cada deixa para novos rumos.

A vocalista, sempre comunicativa, enquadrava as suas escolhas com a preocupação de explicar o sentido das letras, revelando o alinhamento como um todo não só musical, como filosófico e de combate, pela perservação da memória e dos fantasmas da História (e das suas histórias), da importância da Palavra, mesmo nas composições já cristalizadas no cânone, com a disrupção necessária do activismo e da responsabilidade assumida com o orgulho de, pelo menos na duração de um concerto, alertar e elevar, numa partilha empática da sua mundivisão por via da Arte e da excelência na sua execução.
Memorável a todos os títulos.
Uma performer singular e fascinante.

Alinhamento (por ordem alfabética):

Dame Iseut
Dreaming of You
Doudou
Flor de Lis (Upside Down)
Fog
Ghost Song
I Lost My Mind
Obligation
The Trolley Song
The World Is Mean
(Canção folk Carolina do Sul)
Thunderclouds
Until

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