home Antologia, LITERATURA Chamavam-lhe Grace – Margaret Atwood (Bertrand Editora, 2018)

Chamavam-lhe Grace – Margaret Atwood (Bertrand Editora, 2018)

Chamavam-lhe Grace, publicado pela primeira vez em 1996, chega agora ao mercado português (na sequência da sua adaptação ao formato minissérie na gigante Netflix), numa tradução de Ana Falcão Bastos, como parte de um fluxo que parece ser um despertar para o trabalho da brilhante Margaret Atwood. A adaptação do seu romance de 1985, The Handmaid’s Tale, para o formato de série, trouxe o nome da escritora canadiana, nunca totalmente esquecido, de novo para o mercado.

Imigrante irlandesa e fruto da Grande Fome, Grace é uma mulher com dois nomes e, aparentemente, duas personalidades, que correspondem à divisão da feminilidade e das expetativas de género binárias que existiam para a mulher vitoriana, neste caso, reduzidas a inocente ou criminosa. O romance explora o conflito entre narrativas oficiais e as pessoais, no que se apresenta como uma tentativa de encontrar a verdade sobre Grace, a razão de ter morto Thomas Kinnear (à data do crime seu patrão) e a sua governanta, Nancy Montgomery, com o auxílio de James McDermott – e o seu eventual arrependimento, o resultado esperado de uma sentença de prisão perpétua.

O livro é em si uma manta de retalhos, cujos padrões dão nome a cada um dos capítulos, igual à que Grace cose nos encontros com o Dr. Simon Jordan, um médico dedicado a casos complexos de saúde mental e que mostra interesse pelo seu caso enigmático. O relato de Grace na primeira pessoa, que nos deixa ter acesso ao que pensa e escolhe contar, surge entrecortado por cartas, trechos de diários de Susanne Moodie, uma colona que visitou Grace Marks no hospital, o retrato a lápis de Grace e do seu cúmplice no julgamento, epígrafes de autores como Emily Bronte e Emily Dickinson ou até o livro de punições praticadas numa prisão. Entre ficção e pedaços de relatos mais ou menos verídicos, a história de Grace é assim desenhada, na união dos pontos desta constelação literária, lado a lado com o disclaimer de Atwood no posfácio que, apesar de se ter inspirada na vida de Grace Marks, uma jovem que foi condenada aos 16 anos por homicídio no Canadá, o livro é, em última análise, um trabalho de ficção.

É através dos encontros de Grace com Dr. Jordan, que pretende avaliar a sua condição mental e capacidade de regeneração, que a narrativa é construída, entre memórias e vislumbres do passado de Grace, que se apresenta ao médico como sã, astuta e capaz de o avaliar da mesma forma que é avaliada, distinta da mulher histérica que o médico esperava conhecer. Apesar de uma resistência inicial, dado o silêncio em que tem vivido dentro da prisão, são os diálogos entre médico e paciente a raíz da trama. Mary Whitney, uma jovem criada que trabalhou com Grace antes de morrer, é o nome usado por Grace quando foge para os Estados Unidos, depois de cometer o crime que a levou para a prisão. Quando Grace não consegue encontrar uma resposta à altura dos ataques sexistas dos guardas da prisão, evoca a memória de Mary, e as suas palavras tomam conta da sua boca, num ventriloquismo que intensifica a pluralidade de vozes que a habita. É através das lembranças de Grace e do lento desfiar da narrativa que se clarifica o passado desta, assim como o de Mary, o seu trágico fim e a vida traumática de Grace antes do crime. Sob o retrato de Grace é também feito um retrato do Canadá no século XIX, concretamente da medicina, das condições de presos e doentes mentais nos asilos, da busca pela humanização e por um tratamento mais digno desses mesmos doentes, materializada na personagem do Dr. Simon Jordan, cujas viagens pela Europa têm por objetivo conhecer as condições dos asilos, espaços lotados onde a falta de condições de higiene e a frieza e indiferença de diretores e funcionários dificilmente contribuirá para uma reabilitação dos doentes e que, apesar da falta de meios, alimenta o projeto de construir um hospital privado, confortável e sem os aparelhos elétricos ou outros instrumentos que se creem curar efetivamente os doentes mentais.

Quando não está na prisão, Grace trabalha na casa do diretor da prisão, onde contacta com o universo feminino, mesmo que apenas como voyeur: “à terça feira temos a questão feminina e a emancipação desta ou daquela” (28), uma breve referência ao tempo concreto em que a narrativa tem lugar, reveladora da preocupação constante de Atwood com a condição da mulher nos mais variados espaços e tempos. Grace desperta nas mulheres que frequentam a casa do diretor alguma curiosidade, por ser “uma assassina célebre”, da mesma forma que o enforcamento de McDermott, seu cúmplice, teve um grande público, levando a jovem rapariga a perguntar o que haverá de célebre num crime, quando comparando com célebres cantoras ou célebres espíritas e o que parece ser uma atração pela morte dos outros, pelo sensacionalismo e pela tragédia alheia, que tem as suas raízes bem longe no nosso passado e hoje continua bem viva. Atwood refere no posfácio que o crime de Grace Marks, e o seu retrato como rapariga inocente, atraíram a atenção dos jornais da altura. No entanto, e apesar de saber que o seu crime está presente no seu corpo como um cheiro forte a “flores mortas”, Grace sabe que, por ser mulher e, à crença da altura, incapaz de matar dada a sua condição feminina, ser assassina é ainda uma categoria menos brutal do que ser assassino. Para além da dualidade de Grace, cujo fingimento é trazido ao clímax numa sessão de hipnotismo que levará à sua libertação, incapaz de convencer todos os presentes que o seu corpo foi tomado por Mary, o seu retrato adquire múltiplas perspetivas através dos juízos de valor feitos por outros e a ambiguidade que é própria de um julgamento, onde apenas é relevado o que é desejado, pelo que é dito pelos advogados de acusação, as mentiras que advogado de defesa conta.

Chamavam-lhe Grace tem lugar numa era em que a mulher era sujeita a internamentos regulares, debaixo da autoridade médica masculina e diagnósticos muitas vezes falsos de histeria (como acontece com Grace), numa tentativa de curar o resultados da melancolia, tédio e a atrofia de se ser mulher no século XIX, “devido à crescente ansiedade provocada pela vida moderna e à consequente tensão sobre os nervos” (54), onde os papéis dentro da casa se reduziam a esposa, mãe e criada. O livro debruça-se sobre a grande incerteza da mente e a incapacidade de a dissecarmos, como se faz numa cirurgia, e das razões que levam uma jovem rapariga a matar, escondidas entre mentiras e narrativas tecidas em redor da verdade. Depois de morto, o corpo de McDermott foi dissecado, em busca de uma verdade científica para que tivesse cometido um crime, da mesma forma que Dr. Jordan percorreu o cérebro de Grace às apalpadelas no escuro, guiado pelo que ela ora omitia, ora revelava. Chamavam-lhe Grace é um ensaio sobre a condição feminina, os mundos solitários das prisões e hospícios e ainda da origem da ciência moderna, dos primórdios do estudo do comportamento humano, a necessidade de matar e a regeneração de quem aprende a mentir, dissimular e esconder para sobreviver.

Por defeito profissional, a Ana Carvalho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

Mais recensões/crítica literária AQUI

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *