Há dias realmente contraditórios. O 10 de Junho deste ano foi um desses dias. Saí de casa relativamente seguro de que, mais hora menos hora, ia ter de partilhar o espaço público com uma qualquer procissão de skinheads de extrema-direita. É uma espécie de ritual anual. Lá estavam eles, na baixa lisboeta, gritando obscenidades racistas. Nas comemorações oficiais, por seu turno, lamentava-se que Portugal tenha hoje “história a menos” e que haja medo de usar a palavra “Descobrimentos”. Dia contraditório, dizia eu, porque depois de me desviar da manifestação de extrema-direita, chego a casa e estava por todo o lado a notícia de que acabava de sair o álbum de Classe Crua – o novo e muito aguardado projeto assinado por Beware Jack e Sam the Kid. Nesse dia vivi em dois países. Na rua confronto-me com o nacionalismo primário, bárbaro e racista. Em casa encontro-me com um disco que nasce da Lisboa que é diversidade e abertura. Pode-se dizer que o disco Classe Crua salvou o meu dia.
Para quem segue o universo do hiphop português este era um disco muito esperado. Os dois músicos já se tinham apresentado juntos em “Engana”, música lançada em 2016 que Sam the Kid incluiu na sua primeira compilação como produtor: Mechelas (2018), com o carimbo da TV Chelas. Nessa música Beware Jack avisava que tinha estofo e Sam the Kid mostrava que sabia exatamente como fazê-lo brilhar. Estavam já nessa altura a preparar o de Classe Crua que deram ao mundo neste 10 de junho. A esperança confirmou-se: este é um dos mais bonitos e especiais encontros do rap português.
Não era empreitada simples.Apesar das qualidades individuais de cada um, o nome de Sam the Kid tem um peso forte em qualquer projeto. Ele é um artesão sonoro perfecionista, exímio e apaixonado. Um dos melhores do mundo no seu ofício. Rimar nos seus beats é sempre um risco porque pode deixar o ouvinte tão apaixonado pelo instrumental que quase perdeatenção à lírica de quem rima. Mas esse receio desaparece mal Beware Jack entra em cena. Narrador hábil, Beware abre o disco com “Cobra Capelo” e dissipa qualquer dúvida que pudesse haver: o rapper veio para brilhar nos beats do Sam. O beat é feito à medida de um flow encadeado e ritmado que nos deixa a sorrir, curiosos, pelo que se vai seguir. “Pensavam que tava quieto?”, abre Beware Jack, numa música que antecipa essa “cabeça no astral” que nos irá guiar na próxima hora. O rapper oferece-nos rimas cheias de cores, cheiros, feitios e texturas. Sam the Kid brinda-nos com beats que as elevam, aprimoram e distinguem.
Estive três meses com álbum à perna e não foi fácil escrever sobre ele. Quanto mais ouvia o álbum mais sentia que não o estava a respeitar. Porquê? Porque ele demorou anos a ser preparado. Está carregado de pormenores, detalhes e brindes. Como podia eu, enquanto ouvinte, fazer justiça a todos esses pormenores se o ouvia enquanto escrevia,limpava a casa ou viajava de metro? Ficava sempre com a sensação de estar a perder os detalhes que o tornavam singular. Não estou a dizer que não se deve ouvir música nesses contextos. Digo antes que há álbuns que merecem uma outra atenção, uma dedicação diferente. Quando foi que nos desabituámos da prática de ouvir música sem necessitarmos de estar ocupados com outra coisa em simultâneo? Quando foi que a categoria de “música de ambiente” se hegemonizou, ao ponto de só ouvirmos música como companhia para alguma outra tarefa que estamos a fazer? Tudo nos pressiona a desaprender esse prazer simples de parar e simplesmente ficar a escutar. Demorarmo-nos na música, deixarmo-nos ficar.
Mergulha-se então no álbum, com tempo, e tudo nele nos parece distinto da maior parte dos trabalhos que têm saído no universo hiphop (e não só). O método crescentemente usado para se lançar um álbum consiste em ir lançando música a música, espaçadamente, nas plataformas online. As pessoas vão ouvindo, os concertos vão aparecendo, o público vai-se fidelizando. Quando já se tem um conjunto substancial de temas, dá-se uma ordenação, um nome, empacota-se e sai o álbum. Esse modelo é legítimo e tem as suas vantagens, mas é muito diferente da proposta de Beware Jack e Sam the Kid.
Em Classe Crua há um lento trabalho de dedicação ao detalhe. Há pormenores em todas as esquinas. Desenvolve-se um conceito e não há nada ao acaso. O disco é todo ele uma grande viagem. É uma viagem marítima, desde logo, porque as músicas estão cheias de referências metafóricas ao universo do mar e dos seus habitantes, que vão moldando uma forma particular de narrar histórias, memórias e devaneios. É uma viagem temporal também, porque o disco pode ser ouvido quase do dia para a noite, como um percurso que atravessa diferentes universos simbólicos, emocionais e narrativos, que o dia e a noite invocam nos nossos imaginários. Mas é finalmente uma viagem biográfica, já que Beware Jack é simultaneamente biógrafo de si próprio – do artista e não da pessoa, como ele adverte sempre… – e observador atento e vigilante do que o rodeia. É storyteller e narrador introspetivo. É objeto e sujeito, ator e espectador de uma cena que detalhadamente vai montando. Como ele diz em “Microfone da Glória”:«só quero que o meu rap viaje/deseja-me bom voyage».
Que viagem narra a Classe Crua? Direi pouco a esse respeito porque o prazer da descoberta é essencial à fruição da empreitada dos dois músicos. Na travessia encontrarão memórias e desejos, observações da cidade e confrontos familiares, emoções e distâncias, curto circuitos de futuros prováveis e destinos impensáveis, loucura e boémia, sofrimento e amor a três tempos. Há a felicidade, sem dúvida, de alguém que se quer agigantar.
A viagem é longa, ousada e prazerosa. Se de todos os motivos possíveis só pudesse escolher um para destacar este álbum, usaria uma frase que às tantas se ouve em Ramadão: «quem canta assim não finge».
Por defeito profissional, o João Mineiro escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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