home Antologia, LITERATURA Como desenhar o corpo humano – Companhia das Letras, 2018

Como desenhar o corpo humano – Companhia das Letras, 2018

Reconhecida e devidamente identificada alguma “aversão” ao género “coletânea de textos”, é sempre bom quando algum livro desta “tipologia” nos surpreende e, assim, ajuda a que outros, que por princípio repudiaríamos, nos suscitem maior entusiasmo à partida. Foi exatamente isso que sucedeu com Como Desenhar o Corpo Humano, obra na qual a Companhia das Letras reuniu 21 textos, de 21 autores de língua portuguesa, em 21 anos de jovens criadores, que veio, claramente, superar expetativas e quebrar esta espécie de bloqueio mental que nos contamina quando olhamos para obras coletivas.
Os textos dos novos autores que este livro reúne são, no mínimo, surpreendentes. Se não tanto pela qualidade da escrita, que já conhecemos, de alguns dos seus autores, como José Luís Peixoto, João Tordo e Ondjaki, mais pela forma como essa escrita flui em cada texto e na obra como um todo, numa união quase natural entre as estórias. As frases são quase sempre curtas, as ideias diretas e secas e há na linguagem e na forma de expressão uma dureza que, diríamos, é também muito característica desta geração de escritores que aqui se juntou.
A leitura desta obra fez-nos lembrar a sensação que tínhamos ao fazer o “cadáver esquisito”: há sempre um sentido comum oculto nas coisas, as ideias mais desconexas podem fazer sentido juntas, sobretudo se deixarmos o acaso decidir que sentido é esse.
O fio condutor dos vários textos (entre prosa e poesia, misturados), mais do que o corpo humano, é mesmo o que em nós há de humanidade, enquanto seres que constantemente refletem, tantas vezes de uma forma autodestrutiva, angustiada e angustiante, sobre os nossos limites – os físicos, e os outros. A auto-consciência (“parecia um rapaz por fora, mas era muito velho por dentro”, diz Ana Pessoa), a noção dos limites do nosso corpo, as suas possibilidades, as suas falhas. O corpo-meio, o corpo em uso, o corpo-obstáculo (“Da primeira vez que a despi, libertando-a das roupas e da ligadura que lhe cingia a coxa amputada, tive de reprimir o vómito”, Andreia faria), o corpo-doença (“a minha irmã do meio tem um cancro, acabou de mo dizer, à entrada do quarto” Inês Bernardo).
Embora a linguagem crua pretenda dar um choque de realidade a quem lê, há um toque de surrealismo em vários textos: “Por vezes, quando chego a casa após a aula das seis, pego numa serra dentada de cabo de madeira que guardo na despensa e serro-me um braço ou uma perna – geralmente uma perna, a esquerda, por me deixar as duas mãos livres e permitir uma posição mais cómoda.” (Teresa Aica Barros).
E é este sabor doce de algo que não é possível, mas podia ser, de homens e mulheres que querem mais do que o que têm, que exigem do corpo mais do que ele dá, que se encontram e desencontram, e perdem uns dos outros, para acabarem sempre sós, que nos deixa uma réstia de sorriso nos lábios quando terminamos a leitura.
Sabe mesmo bem ler textos bem escritos, na nossa língua, por vozes que são claramente as dos nossos mais criativos escritores atuais, vendo a linguagem explorada ao máximo, em todos os seus esquemas e subterfúgios, em mil raciocínios complexos, personagens trágico-sinistras ou simplesmente deambulantes.
Ainda bem que esta obra é coletiva, porque o mundo de personagens que dela resulta é um planeta inexplicavelmente interessante de liberdade.

Por defeito profissional, Joana Aroso escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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