Por vezes temos a sorte de ser tocados pela Arte.
O fenómeno vem sendo estudado e filosofado há séculos, principalmente pelos românticos, cuja reflexão ainda hoje, sem sabermos muito bem como, ressoa na nossa mente sempre que o Amor surge no horizonte.
Ao contrário do romantismo, onde a forma era raínha, Como Ela Morre despe-se de todos os artifícios, concentrando a atenção do espectador no texto e nas actuações do elenco.
A “nudez” é literal em termos cénicos, com a parede do fundo do palco do Teatro Nacional S. João visível, em toda a sua negritude, e com adereços reduzidos a uma mesa, cadeiras, um candeeiro, encostados a um canto, um lugar de passagem para os quatro actores em palco se sentarem entre cenas.
O desenho de luz, da autoria de Thomas Walgrave, assume particular importância em toda a arquitectura cenográfica, criando ambiências imateriais que refletem a ribalta ou segredo de determinado texto ou cena.
Um dos momentos de maior impacto visual em todo o espectáculo decorre desta simplicidade. Basta um ventilador, um material simulando a neve e uma enorme máquina à manivela, que julgávamos extinta, simulando o vento. Tudo manipulado pelo elenco, assim como os figurinos, trocados ante os nossos olhos, como se algo habitual no teatro.
Este travo a pós-modernidade, de cruzamento e interdependência natural de ideias, cenas, personagens e adereços, não é casual.
Como refere Tiago Rodrigues, creditado como co-criador e autor do texto, em entrevista ao i, “não há uma decisão completamente fechada de como propor este espectáculo. Há um mapa do que pode acontecer em palco, há obviamente um grande rigor na relação com o texto, mas depois o Pedro, a Isabel, o Frank e a Jolente tomam também em palco decisões a cada noite em função daquilo que é o debate que fizemos à volta da mesa [nos ensaios de mesa que no caso deles se prolongam praticamente até à estreia] e que agora estamos a fazer ainda em palco.”
A imediatez é clara, com cada cena liberta dos grilhões de uma encenação rígida, guiada apenas pela liberdade que o elenco escolhe ou abdica de utilizar em determinado momento. Improviso é a palavra de ordem, algo sempre mágico perante grandes intérpretes desta nobre arte, como são os quatro magníficos elementos do elenco, sempre acompanhados, pelo jazz que se vai ouvindo em fundo.
As fronteiras do ensaio e da representação “real” dissolvem-se diante do nosso olhar incrédulo e nem os (por vezes longos) solilóquios de cada personagem nos distraem por um instante, fixados no palco.
Longe de ser uma recriação do original de Tolstoi, a obra literária paira sobre toda a palavra dita, instalando frequentemente a dúvida acerca do que veio da pena do russo ou do que é texto original.
A exploração matricial da peça é o poder único da dita grande Literatura, aquela capaz de resistir ao inexorável poder da passagem do tempo, como companhia, cúmplice e potencial “co-autora” nas decisões mais fracturantes das personagens, dois casais, duas famílias por ela contaminadas e irreversivelmente mudadas.
O facto, a princípio desconcertante, de a peça ser falada em três línguas (português, francês e flamengo), com tradução simultânea em português (que os actores, em alguns momentos de grande comicidade, procurar ler quando Frank usa o indecifrável flamengo) acentua o aparente antítese entre a importância e a completa aleatoriedade da língua na fruição da experiência teatral.
Expliquemos. Para que a beleza e a fluidez de um texto seja devidamente apreciada, a língua em que nos chega assume papel preponderante, pela familiaridade e exponencialmente maior possibilidade de empatia e reencontro com os sentidos e significados que carregam. Por outro lado, no caso do clássico Anna Karénina, o texto é de tal forma avassalador e dominante, que o meio como nos chega se torna irrelevante.
Mas nada substitui o francês quando o assunto é o amor e a perda. Em qualquer outra língua, a frase central, repetida pela fantástica Isabel Abreu, encarnando aqui uma mulher portuguesa em 1967 (com todo o peso simbólico que essa data tem: o homem ainda era dono da mulher no casal, tal como Anna pertencia ao marido dois séculos antes), perderia toda a sua leveza sonora, contraste irónico com o peso do seu sentido: “Les familles heureuses se ressemblent toutes; les familles malheureuses sont malheureuses chacune à leur façon”.
O texto e o objecto físico que o contém (o livro), transfiguram-se em “adereço vivo no espectáculo, citado, lido, às vezes encenado pelas próprias personagens”, como explica Tiago Rodrigues ao Público.
É desta combinação livre de factores que vive Como Ela Morre, em que Tiago Rodrigues recupera uma colaboração já longa com a companhia belga tg STAN, na pessoa dos actores Frank Vercruyssen e Jolente de Keersmaeker, membros da mesma, a que se juntam Isabel Abreu e Pedro Gil.
O texto é magnífico, resgatando para os dias de hoje angústias existenciais, dúvidas, rupturas e momentos decisivos criados há quase dois séculos, com uma urgência pungente, tornando-as nossas.
Como todos os grandes, Tolstoi falava daquilo que conhecia, dos meios em que circulava, pondo a uso o seu poder de observação e racionalização de pulsões e actos aparentemente inexplicáveis à época. Fê-lo de forma perfeita, quase definitiva, ainda hoje cânone para qualquer escritor ou leitor, ou como este espectáculo demonstra na perfeição, qualquer alma sedenta de algo que insiste em escapar-lhe, o “relâmpago” de que Frank fala no final.
“…vivemos na penumbra. Mas por vezes há uma palavra, uma frase, um parágrafo. Um relâmpago fugaz que ilumina o mundo. E então vemos o caminho inteiro que nos resta percorrer durante a nossa vida. E vemos todas as outras vidas cujos caminhos se cruzam com o nosso. Amantes, amigos, inimigos. Durante um instante, estamos todos ligados sob a luz do relâmpago. E depois regressamos à penumbra. Cada um a falar a sua língua que mais ninguém no mundo consegue compreender. Cada um intraduzível, a tactear na escuridão, com medo de onde pomos os pés a cada passo do caminho. E então é preciso reler. Sabemos que ela morre, mas temos de compreender como ela morre. Temos de convocar o relâmpago e fazer durar o instante de luz.”
Durante 90 minutos, ficamos encadeados com a luz emanando do palco.
Como regressar ao buliço da rotina em seguida?
Wackenroder, um dos grandes cultores do romantismo alemão, falava deste desnorte a propósito do choque com a realidade depois do contacto com a Arte (V. Contos Musicais, Antígona, 2016). Depois de um grande recital, uma das suas personagens “com olhos mais lúcidos e uma determinada melancolia sublime e serena, olhava de cima para todo o rebuliço do Mundo. (…) mais puro e enobrecido (…) Pensava: tens que permanecer nesta doce vertigem poética toda a vida, sem interrupções “.
Uma utopia, que podemos e devemos alimentar com estes fragmentos de sublime.
Foto: © Filipe Ferreira