home Antologia, LITERATURA Confissão de Um Assassino – Joseph Roth (Cavalo de Ferro, 2018)

Confissão de Um Assassino – Joseph Roth (Cavalo de Ferro, 2018)

Tudo em Confissão de Um Assassino (Cavalo de Ferro, 2018) se constrói, assim que se lançam os alicerces do edifício, para fomentar a desconfiança do leitor, para provocar a sua descrença – jogar com esses términos, onde cessam os pactos narrativos, e os convénios da ficção perdem as suas roupagens de gala. O breve romance de Joseph Roth será, até ao fim, um desfile indeciso de asserções questionadas pela sua própria natureza, mas também pelos canais por onde corre a informação. Um narrador nada fiável, um relato que leva o pormenor e a minúcia a extremos, mas um fundo de inquietação e impalpabilidade que torna tudo uma ficção de uma ficção de uma ficção…

O restaurante aonde o narrador se dirige, logo nas primeiras linhas de Confissão, e ao qual irá regressando sucessivamente, é um estabelecimento estrategicamente eleito – pelo romance, mas também pelo seu narrador. Ou seja, escolhido tão ao acaso, que parece um milagre dos inspirados acontecimentos fortuitos. O Tari-Bari tem a substância imprecisa e cativante de uma paisagem meio oculta pelo nevoeiro. Tão incerto e acolhedor quanto o relógio que, ora dá, ora deixa de dar as horas, o restaurante russo alberga um compósito de clientes que esponjosamente se nutrem de álcool e histórias de perdição, aventura e esquecimento. A atmosfera que carrega o Tari-Bari e que o transcende, é o barril de pólvora de Entre Guerras.Um Um tempo de cruel antecipação dos piores conflitos armados, que oscila entre a pobreza detectada a cada passo, e o charme, «o demónio especial da espionagem» (p.15), o apelo do mistério. Um tempo suspenso entre dois conflitos que arrasariam o mundo até então, e desde esse momento histórico. O narrador de Confissão de Um Assassino – um «escritor» (p.12), em tempos ligado a um «importante jornal» (id.) – não é o assassino epónimo, e não é a sua própria trajectória de crime e expiação que irá ocupar o romance. Antes lhe é passada uma procuração narrativa, e será o relato de outrem, aquilo que o leitor consumirá, como se ocupasse uma das mesas do Tari-Bari. E essa será uma das sensações que há-de experimentar. É Golubchik o assassino confesso, e Confissão é o relato do percurso que o conduz até ao assassínio. O seu memorial faz, simultaneamente, ao mais digno e ao mais questionável, porque tem tanto de legítimo como de duvidoso. Demanda da identidade, ela radicará num príncipe que se recusou a assumir uma paternidade extramatrimonial. Motivo pelo qual a busca do futuro assassino será um caminho sinuoso para chegar às suas raízes, sem nunca deixar de ser uma estratégia de enriquecimento material. É o próprio quem falará da «tragédia da banalidade» (p.136). Toda a sua perdição se jogará, não com os lances da moral e da «elevação», mas num mundo inequivocamente concreto, de jogadas certeiras e falhanços retumbantes, de capitais e subornos, de sonegações e dos aproveitamentos mais reles. Golubchick está no meio de tudo isso.

Golubchick tornar-se-á, com o tempo, o espião perfeito – «o mais hábil de todos os agentes» (p.65), como dirá. Possui o amoralismo e o carácter convenientemente apolítico – «Não me interesso por questões políticas. Prefiro assuntos privados.» (p.13) – necessários para singrar nas águas turvas da intriga internacional. Muito por acaso, mas também com uma tenacidade de fura-vidas, atravessa a Europa do seu tempo de aventura em aventura. A matéria política misturar-se-á perigosamente, no seu percurso, com as tropelias de uma vida amorosa sempre escangalhada. Sobretudo na fase da «grande confusão» (p.97), na qual disputa o objecto das suas afeições com uma figura reincidente no seu relato e na sua vida, Jeno Lakatos. Trata-se de um segmento da sua vida que se separa, mas nunca completamente, do trabalho que Golubchick realiza. Porque, no fundo dos seus intentos, encontra-se, longe de estar em repouso, o desejo de vingança, dirigido ao reticente pai, a um meio-irmão altivo. A toda uma miragem de afluência que nunca passará de um desenho ilusório no seu horizonte.

Ossos do ofício, Golubchick é um observador, exímio a detectar os pormenores que determinam um caso, traçam o carácter de um suspeito ou de um interlocutor – «Cravei nele o meu olhar. A sua pequena cara, de faces cavadas, e onde mal cabiam olhos, nariz e boca, permanecia expressiva. As suas feições como que careciam de espaço para se alterarem» (p.76). Essa capacidade, que provém da invenção romanesca, transmite-se à linguagem do romance, cuja subtileza é capaz de atentar na «violência voluptuosa» (p.116) das mulheres ou de comparar o clima francês com o da Rússia – «o Inverno em Paris é muito semelhante ao Outono russo» (p.135). O lastro de ambiguidade que se desprende das suas narrativas, esse advirá, talvez, da actividade que foi desenvolvendo, ao logo da vida, ou é uma salvaguarda de segurança – o leitor nunca o saberá. Porque poucas confissões foram tão cuidadosas na sua feitura e no que nela revelam. Certo parece ser que muito do que Golubchick relata é incerto, ou depende de uma reconstrução cautelosa. Porque, por baixo de todo o rigor da sua exposição, está – ou esteve – uma personalidade em crise. Uma crise de identidade, que anseia por fazer as pazes com um passado por fechar, que se mescla demasiado facilmente com a ambição e o impulso de sobrevivência.

Romance de espionagem, mas também testemunho de uma época conturbada da História moderna, Confissão de Um Assassino é, sobretudo, um romance de personagem. Romance, além disso, de uma grande destreza a manobrar as diferentes vozes narradoras – entre o espião e o escritor que lhe serve de mediador – e tempos dissonantes. Um presente de Entre Guerras, em Paris, versus uma Europa que enfrenta os anos que antecedem a Primeira Grande Guerra, bem como aqueles em que decorre o terrível conflito. Um tempo que é ainda o da Revolução Russa – um período histórico, enfim, que lida com os destroços de todas essas vagas alterosas. Golubchick é a personagem que encarna as contradições e as tempestades políticas do seu tempo. E que, pela espessura das suas próprias contradições, pelo que nele e no seu relato há de dúbio (ainda que exposto de forma exemplar), é uma notável construção ficcional.

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