home Didascálias, TEATRO Confissões de um Coração Ardente – CCB, 16/02/2019

Confissões de um Coração Ardente – CCB, 16/02/2019

Se assiste ao elenco desta peça encenada por Carla Maciel, o extraordinário mérito de tornar fluído um texto opaco, hermético, entre seis personagens que se juntam numa despedida de champagne (capítulo I), que gradualmente se vai tornando caótica, não se consegue, todavia, até ao final, vislumbrar a razão, ou traço unificador que as justifique, ou ao seu discurso. As questões filosóficas em torno da existência de Deus, da busca da felicidade, da verosimilhança entre o sonho e a realidade e da importância do amor, não são, a nosso ver, suficientes para tornar credível o encontro entre tais convivas.

O escritor, personagem mais ténue e ausente, homem sem história, mantém-se silencioso ao longo de quase toda a peça, vislumbrando-se que talvez o seu propósito seja apenas relatar o que ali acontece.

A cena passa-se numa casa particular, de ambiente algo soturno – reforçado pela iluminação amarela e doentia, sob a qual se movimentam as personagens em torno de uma mesa de jantar. Mas porque existe uma cama em palco? O que representa? Neste leito sucedem-se períodos de “hibernação” de alguns dos personagens, sem que fique clara a sua utilidade ou simbolismo. Quem adoece, ou parece padecer ou quase morrer em espasmos – o personagem que presencia fantasmas – fá-lo, afinal, num dos sofás.

A mulher é o elemento aglutinador, a chefe de orquestra entre os ofendidos e humilhados (capítulo II), intervindo sistematicamente na alteração do ritmo da peça e da noite de boémia. Ela não é uma mulher, mas A mulher, todas as mulheres, e o que representam no universo masculino de Fiódor Dostoéivski. É o elemento catalisador, através da dança, dos jogos de salão, da leitura poética e, pela sexualidade da sua presença, pela possibilidade da maternidade, aflorada como a garantia de continuidade da espécie, de sentido para a própria vida e da vida após a morte, já que na Terra, duas rectas paralelas jamais se encontram e se se encontram no infinito já não é dado ver ou perceber a alguns dos mais simples mortais.

Percebem-se os traços mais telúricos de um, os cínicos de outro, o epicurismo e o estoicismo noutros, e o inevitável romantismo de um coração doente (capítulo III). Tudo havia, portanto, para acontecer e no final, pouco acontece, talvez porque a luz aborrecida, o cenário pesado e estático e a ausência de um verdadeiro fio condutor que empreste plausibilidade à acção, nos deixam, a nós espectadores, com um profundo respeito pelo excepcional desempenho dos actores.

O desencanto perante a vida, único elo entre os seis personagens em estágio mais ou menos semelhante de balanço entre o que viveram, o que são, e qual a fé, ou ausência, que os move, poderia, a nosso ver, ter resultado em algo mais apelativo e que não sobrevivesse somente à custa do enorme mérito de quem dá corpo e voz às personagens e também, porque não, à memória do incontornável Dostoiévski.

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