home Antologia, LITERATURA Confissões de um Travesti (Orfeu Negro, 2019)

Confissões de um Travesti (Orfeu Negro, 2019)

Talvez Confissões de um Travesti seja mesmo o primeiro volume de uma coleção sobre psiquiatria e comportamentos humanos, publicado pela primeira vez em França em 1956. Talvez seja apenas um hoax literário levado a cargo por Éric Losfeld, editor controverso de muitas publicações de teor erótico e sexual, anteriores à revolução sexual dos anos 60.

Na edição original, Confissões era composto não só pelo texto que foi agora traduzido por Jorge Lima Alves para a Orfeu Negro, mas também por fotografias que, aparentemente, mostravam o tal homem que se apresenta como Anónimo vestido com roupas de mulher. Estas fotografias deram lugar nesta edição portuguesa a ilustrações de João Maia Pinto, de grafismos vibrantes e de cores berrantes, entre as estéticas surrealistas e a da banda desenhada (sendo esta última uma das linhas de publicação em que o próprio Losfeld foi mais prolífico). A omissão das fotografias (essa forma de arte muitas vezes equacionada, erradamente, com a verdade e o que é documental), pela inserção de ilustrações que nos distanciam do mundo concreto, com os seus elementos quase oníricos, parece funcionar para posicionar o texto mais próximo da tal ideia de que terá sido não uma confissão-relatório mas um “embuste da responsabilidade de Losfeld”, como nos é dito na Nota de Edição. Relatório médico ou embuste literário, o texto é um breve vislumbre da vida de um homem de quarenta anos, cujo desejo, logo nas primeiras linhas, é confirmar a sua heterossexualidade, provada pelo seu casamento com uma mulher e pelos filhos que teve com esta, apesar da compulsão em se vestir de mulher. Neste relato honesto, sem pudor ou travão, e a roçar muitas vezes o puro gabanço, entramos no mundo de um homem que explora fetiches sexuais relacionados com a prática de se vestir de mulher, através de lembranças da vida adolescente – e ao fascínio por roupa interior feminina de familiares – até à procura de satisfação sexual fora do casamento, dado que a sua esposa parece não conseguir entender os seus desejos, chegando até a julgá-los como doentios. Mais do que uma simples obsessão pela roupa feminina, o narrador parece também nutrir uma obsessão pelo corpo feminino, que cai entre o masoquismo e o narcisismo. Parece existir, para além de uma atracão pelo corpo feminino, uma forte satisfação em ver o seu próprio corpo ao espelho em roupa de mulher, e esta imagem surge várias vezes ao longo do curto texto. Há episódios muito problemáticos, como aquele em que o narrador testemunha uma cena violenta entre vários homens e uma mulher que é molestada por estes, uma imagem que parece não sair da cabeça do narrador e que, anos mais tarde, irá imitar com uma mulher, agora de forma consentida. Para uma mulher, e certamente para um homem também, por vezes torna-se desconfortável ler o livro. Talvez seja adequado refletir sobre a forma como corpos femininos em roupa interior, ou até mesmo nus, nos são apresentados como objeto sexual desde sempre e em todo o lado, algo que resulta nesta concepção do corpo da mulher e nas suas roupas como instrumentos artificiais para explorar fetiches, assim como as imagens de violência e submissão feminina estão intrinsecamente relacionadas com a forma como a imagem da mulher sexual é construída num imaginário coletivo e pessoal.

Apesar da honestidade do texto, há um sentimento de alienação e isolamento que pauta a experiência deste homem que, através de jornais e revistas, tenta procurar outros que partilhem o seu fetiche, muitas vezes sem sucesso. Vestir-se de mulher está ainda exclusivamente reservado ao espaço da casa ou do quarto de hotel e nunca ao espaço público e o narrador oscila entre uma vergonha em ser visto com roupas de mulher e um grande desejo de ostentação do que é secreto e tabu. É ainda salientado que este homem, apesar das roupas, é heterossexual, delimitando assim as muitas diferenças (e muitas confusões) entre orientação sexual, identidade sexual ou pura performatividade do género. Um aspeto interessante do texto é a recuperação de nomes de personagens históricas mais ou menos obscuras e que foram praticantes de travestismo e funcionando como uma forma de normalizar a prática, dando-lhe uma história e relembrando que o drag e o crossdressing não são invenções modernas. Ler Confissões de um Travesti é entrar numa espécie de armário reservado para homens que gostam de ser vestir de mulher (o que quer que isso signifique, dado que é a nossa percepção sempre sexualizada da roupa – e de tudo – que confere um género a um pedaço de tecido) e que retiram prazer dessa experiência, relembrando que a prática não é tão obscura ou rara como se pode pensar: no teatro, os homens vestiam-se de mulheres, já que estas estavam proibidas de entrar em palco e durante séculos, os saltos altos eram usados por homens para cavalgar (o salto dava estabilidade para se manterem eretos em cima do cavalo ao mesmo tempo que disparavam arco e flecha) ou como forma de definir um estatuto social (na corte de Luís XIV, grande adepto de saltos de forma a engrandecer a sua baixa estatura, apenas alguns homens podiam usar saltos vermelhos, os mais caros).

Não se poderá dizer deste texto que é completamente subversivo e é pertinente relembrar o episódio muito inquietante de violência sexual contra uma mulher e o male gaze que recaí sobre todas as mulheres presentes no texto. A sua intenção oscila entre desmistificar, num tom por vezes próximo da caricatura, um comportamento não normativo, como é o travestismo, aqui praticado também lado a lado com o sado-masoquismo ou o sexo anal masculino, também eles tabu.

 No entanto, se por um lado se deseja apresentar os desejos mais escondidos e proibidos de um homem e entendê-los como práticas sexuais aceitáveis, não é possível ignorar outras mais problemáticas ou a forma como a mulher é aqui (des)considerada. Ainda assim, e mesmo sendo naturalmente transgressor ser travesti nos anos 20, mesmo que com vergonha e medo, é necessário lembrar o trabalho inovador que foi trazido a um fim prematuro pela segunda guerra mundial (evento também evocado em Confissões) de Magnus Hirschfeld, sexólogo gay e judeu cujo Instituto para a Investigação Sexual foi um refúgio para homens e mulheres homossexuais e transsexuais durante o início do século XX (o mesmo tempo de Confissões) até este ser fechado e parcialmente destruído pelas tropas nazi. Já em 1910, Hirschfeld publicava Travestites: the Erotic Drive to Cross-Dress, uma análise do travestismo, quer masculino quer feminino (sendo este muitas vezes ignorado) como prática social, emocional e física, e seria redutor para uma figura pioneira e revolucionária como Hirschfeld não mencionar nesta leitura de Confissões o seu trabalho científico, que pavimentou o início de um movimento de libertação sexual que a segunda guerra mundial veio colocar em “stand-by” mas, felizmente, não impediu de ser levado a cabo.

É então necessário ler Confissões com ressalvas e como o produto de um tempo e contexto literário, partindo depois para representações mais honestas, menos problemáticas e mais feministas do que é ser travesti ou de se retirar prazer de, por momentos e de forma artificial, vestir a pele do nosso outro sexual. Desmistificar o género não é só descolonizar a mente sexual, na qual a mulher é sempre pensada como objeto, mas também permitir outros tipos de masculinidades e outras formas de se ser homem dentro da matriz patriarcal que ainda nos domina.

Por defeito profissional, a Ana Carvalho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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