O destino de O Coração das Trevas ficou inseparavelmente ligado a Apocalypse Now. O Kurtz de Conrad dificilmente poderia ter um contraponto concreto mais impressivo do que Marlon Brando sob a direcção de Francis Ford Coppola. Limiar da sanidade, estádio resvaladiço da História e dos seus sujeitos, Kurtz é, no livro de Joseph Conrad, tanto quanto na película de Coppola, dotado de uma luz perturbadora, como um sol ofuscante num estranho sortilégio. O horror a que ambos emprestam voz – numa frase que se tornaria emblema da modernidade literária e fílmica – é uma culminância especialmente relevante. Porque, na brevidade expressional desse dizer, está o fundo comprimido e irredutível de um caminho de despojamento, que atravessa várias camadas de apagamento e escuridão, para dizer, por fim, o que mal é concebível através de palavras. Não há mais a dizer depois do horror anunciado com o fim da jornada geográfica e narrativa de O Coração das Trevas. Porque esse horror – e é esse o maior susto do seu apelo – também não se diz, realmente. Não explicita claramente as suas raízes, nem deixa visível a extensão do seu mal. Tudo se queda na presunção de um «mal oculto» (p.64), que deixa em suspenso a sua derradeira verdade. O que apenas a torna mais avassaladora. Algo que não deixa de ser ressalvado nesta edição, excelentemente traduzida e anotada, com o rigor de um grande saber, por Maria João Madeira. Frequentes, pormenorizadas, as notas que acompanham o volume merecem ser realçadas, porque a sua importância e solidez é diametralmente oposta à posição que este tipo de textos de apoio tem de ocupar, no pé de uma página.
Um dos aspectos que particularizam O Coração das Trevas é todo o romance ser uma soberba preparação, um antelóquio genial para qualquer coisa cuja detonação pressentimos desde o começo – mas que nunca há-de deflagrar, para nossa tortura e sedução, o que a escrita de Conrad fornece de forma tão decisiva quanto inconspícua. «A embocadura do Tamisa estendia-se à nossa frente como o começo de um canal interminável» (p.17) é, por exemplo o começo do segundo parágrafo do livro; e há nele a instalação de uma atmosfera de desconhecimento e imponderabilidade fundamentais para a economia do romance. De resto, logo no fim do parágrafo seguinte, sobressai uma expressão que será, igualmente, um fulcro determinante para O Coração das Trevas – «Era difícil crer que o seu trabalho não era ali, no estuário luminoso, mas atrás dele no interior da cisma obscura.» (id.) Talvez não importe tanto o contraste estabelecido entre os adjectivos «luminoso» e «obscuro» (apesar do chamamento desta hábil simetria), quanto a concentração na escuridão que todo o livro vai glosar e fortalecer: «rua estreita e deserta mergulhada na sombra» (p.28); «orla de uma selva colossal, de um verde tão escuro que se diria quase preto, ladeada de espuma branca» (p.33 [novo contraste entre o negro e a alvura]); «sombras negras de doença e fome, jazendo confusamente na penumbra esverdeada» (p.39, onde se ordenam as declinações da escuridão, com «sombras», «negras» e «penumbra» a constituírem, não um pleonasmo, mas um reforço de um sempre pressentido mal); «A noite estava muito límpida: um espaço azul-escuro, efervescente com o orvalho e com a luz das estrelas, no qual as coisas negras permaneciam muito quietas.» (p.112)
Joseph Conrad faz, reconhecidamente, parte daqueles autores para os quais o romanesco é recriação do vivido: autores como, em quadrantes distintos, Hemingway, cuja obra é uma defesa da identificação – inextricável mas maleável – entre o experienciado e o escrito. No caso de Conrad, a experiência como embarcadiço – aspecto inevitavelmente central em O Coração das Trevas – foi determinante para a acumulação de um cabedal de conhecimentos e práticas que se transportaram para tantos dos seus livros. Tal «transporte» revelou-se vário e assumiu feições, necessariamente, distintas. Pense-se, por exemplo, em obras tão díspares entre si quanto No Extremo Limite (in Coração de Trevas e No Extremo Limite, Relógio D’Água, 2011, trad. Margarida Periquito), Vitória (Ulisseia, 2014, trad. Jorge Palinhos), Freya das Sete Ilhas, Sistema Solar, 2015, trad. Aníbal Fernandes), O Companheiro Secreto, O Negro do Narciso, ou Linha de Sombra (in O Negro do Narciso, Coração das Trevas, Linha de Sombra e Outras Histórias, Relógio D’Água, 2017, trad. Luzia Maria Martins, Margarida Periquito, Maria Teresa Sá, Miguel Serras Pereira, Pedro Dias). Entre outras possíveis, várias das quais editadas entre nós, aspecto que nesta lista miniatural se tentou ressalvar. Em todos estes casos, não se trata tanto do exotismo das paragens capturadas pela magistral precisão da escrita de Joseph Conrad – «A luz ofuscante do sol afogava por vezes tudo isto numa súbita recrudescência do brilho intenso.» – (p.36), mas da verdade profunda que elas encerram, da centralidade mítica assumida pela viagem, numa variação paisagística que enseja abarcar o vasto mundo no abismo do seu mistério sempre por desvendar. É sempre a esse abismo que rumam os viajantes de Conrad. Jornadas de conhecimento, tanto quanto de absolutos desconhecedores de tudo. Gente perdida, irremediavelmente vogante. Um fulcro definidor para os mundos criados por este autor – e que nada podia exprimir mais completamente do que a mágica e terrífica vastidão do mar.
Numa das múltiplas e preciosas notas de Maria João Madeira, lemos um apontamento do próprio Conrad, argutamente respigado pela tradutora: «o homem Marlow, com quem as minhas relações evoluíram no sentido de uma intimidade crescente no correr dos anos. [… Marlow] assombra as minhas horas de solidão, quando, em silêncio, encostamos as nossas cabeças deitadas em conforto e harmonia; mas quando nos separamos no final de um conto, nunca tenho a certeza de que não seja pela última vez.» (p.18) Conrad referia-se à personagem pivô de O Coração das Trevas, mas que vinha atravessando, como, de resto MJM nota, obras como Mocidade: Uma Narrativa (Assírio & Alvim, 2003, trad., introd. Aníbal Fernandes), Acaso (Civilização, 2013, trad. Anita Patrício) e Lorde Jim (Relógio D’Água, 2017, trad. Alda Rodrigues). Marlow busca agora Kurtz, o enigma Kurtz, o enigma das trevas em que se encerrou, as que o definem, a ele e ao coração oculto da humanidade. É de novo o escritor quem nos informa, em nova nota, uma vez mais recuperada neste excelente trabalho de tradução (e interpretação, acrescente-se), em que se afirma que a elaboração do romance parte da experiência «levada um pouco (e só um poucochinho) além dos factos verídicos do caso tendo em vista o legítimo propósito, creio, de o familiarizar com os espíritos e as sensibilidades dos leitores» (p.13).
Em O Coração das Trevas – um romance que, na sua brevidade, poderá ser tido como, porventura, um dos pontos de mais sublime concisão em toda a obra conradiana –, os mistérios da navegação fundem-se com o magno desconhecido que é Kurtz. Espécie de protagonista in absentia, centro fantasma de toda a narração. Ele é o que resta de um comerciante que se embrenhou nas trevas da selva africana. Mas as trevas concretas, criadas pela espessura da vegetação, pelo perturbante recato em que se refugiou o antigo mestre do marfim, nada são, comparadas com o escuro que se adivinha – mas nunca se chegará a conhecer. Como em A Semente do Diabo, o que importa não é ver o rosto do monstro. É exactamente por nunca chegarmos a olhar a besta de frente, que ela tanto mais inquieta. É o desconhecido, aquilo que assusta. Assim em O Coração das Trevas, um livro onde o «horror» não tem nome, nem rosto. É um sentimento de inquietude, um limite ardente, mas não transposto, uma tortura que não termina.
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