home Antologia, LITERATURA Correios – Charles Bukowski (Antígona, 2015)

Correios – Charles Bukowski (Antígona, 2015)

Diz o prefácio de Correios, de Gerald Locklin (da belíssima edição da Antígona – Editores Refractários) que, embora a escrita de Bukowski tenha atingido maior notoriedade através da sua poesia e dos seus contos, “é nos romances que encontramos o melhor do seu trabalho”. Que em Correios, o seu primeiro romance, Bukowski consegue a “ascensão do seu nome ao plano do reconhecimento literário universal” e desenvolve os “alicerces que sustentariam a sua carreira literária”.
Após a leitura fica nítido o porquê: o famigerado Henri Chinaski viria a tornar-se personagem revisitada com frequência em muitos trabalhos posteriores, um auto-retrato literário duma densidade emocional tão profunda que não se esgota numa obra só. Todas as personagens que atravessam a narrativa têm essa marca indelével da escrita de Bukowski: existem em vários planos e dimensões, têm diferentes camadas e, mesmo nas intervenções mais breves, nada têm de fortuito. Mas o grande apelo da escrita de Bukowski está na crueza com que descreve as vidas comuns, como se todas tivessem algo de extraordinário. Neste romance percebemos-lhe distintamente essa mestria, na forma como eleva da banalidade uma rotina pontuada por excessos, por sua vez destinados a aliviar o fardo duma existência oca e desprovida de sentido, a um plano poético que não se julgaria possível.
Ao longo da narrativa somos conduzidos pela vida já demasiado erodida deste jovem adulto, embora não se compreenda exactamente o percurso. Encontramos este personagem a meio da sua história, sem qualquer vislumbre da vida anterior ao momento em que o conhecemos ou explicação de como aqui chegou. Chinaski existe como que fora do tempo, embora o contexto social que o circunda seja bem vincado (assumindo até um plano intemporal). A pungência que subjaz às suas descrições da mais elementar necessidade de sobrevivência, transporta toda a narrativa para um plano cinematográfico, em que conseguimos ver distintamente o protagonista atravessar o deserto dos dias sempre iguais, sem qualquer espécie de promessa de futuro.
Aqui, as relações laborais (sempre pontuadas por uma crispação que se diria endémica, decorrente quiçá de um autoritarismo marcado pela sobrevivência do mais forte, marca indelével da land of the free) são-nos apresentadas como uma justaposição de forças e de egos em permanência, onde este insurrecto e contrafeito funcionário dos Correios parece ser a voz duma qualquer resistência inadvertida que nunca o chega a ser. Não é organizada, agregadora ou sequer pensada. Não há qualquer calculismo nas suas reacções, tantas vezes extremadas. Apenas uma resposta visceral à profunda injustiça e falta de razão que marca estas relações. Uma espécie de manifesto, mas que não se propõe sequer a sê-lo.

Há aqui, como em toda a obra de Bukowski, diferentes relações amorosas que vão atravessando a narrativa. O olhar vincadamente machista é quase demasiado marcado para ser verosímil, e não raras vezes o vemos acometido duma inusitada ternura que parece contrariar a postura que este projecta. Quase como se Bukowski quisesse fazer de Chinaski um homem a quem o grotesco é permitido, por forma a obliterar toda a afectividade da sua vida. Talvez seja esse o propulsor desta narrativa, um supremo instinto de fuga de todo e qualquer elo emocional que possa tornar a sua vida ainda mais insuportável. Esse grotesco com traços quase expressionistas chega ao leitor como se de uma purga se tratasse e está também muito presente no retrato da dependência do álcool, força motriz por detrás de todas as acções e ao mesmo tempo sua consequência, formando uma espiral de extremos indefinidos.
Talvez seja essa a grande beleza desta obra: não tendo um início ou fim, empurra-nos para o olho do furacão, onde se justapõem as grandes questões que marcam o modelo de sociedade que construímos. Conduzidos pela crueza da narrativa, somos confrontados com a invasão de uma implausível ternura para com os indigentes que nós mesmos atiramos para a marginalidade. Uma leitura absolutamente essencial.

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