«Raça é uma construção social». Este argumento sociológico, usado a seu tempo para refutar a noção eugenista de que existe uma superioridade biológica e, consequentemente, cultural, de certos fenótipos humanos sobre outros é, hoje, evocado de maneira recorrente para silenciar as vozes que se levantam contra o racismo no mundo pós-colonial. O raciocínio que «resolve» a questão é simples: se a biologia moderna não endossa a existência de diferentes raças humanas, não vale a pena estar-se a falar em racismo e das suas «supostas» consequências no mundo contemporâneo.
Ora, Raça é uma construção social, e se é verdade que não se sustenta do ponto de vista genético, não deixa de ser uma categoria estruturante nas relações de subalternidade e dominação entre os povos há pelo menos quinhentos anos. Em seu Crítica da Razão Negra, o filósofo Achille Mbembe evidencia os usos estratégicos desse conceito pelos europeus da Península Ibérica a partir do século XVI e a sua evolução em todo o Ocidente até o século XXI.
A categoria Raça surge para estabelecer uma hierarquia entre os europeus e os africanos, e seus descendentes brancos e negros, eliminando as diferenças étnicas, culturais e linguísticas entre povos tão diversos entre si quanto os Zulu, os Iorubá e os Hutu, por exemplo, que a partir de então passam a ser chamados simplesmente de Africanos ou Negros, pertencentes a uma Raça inferior à dos Brancos ou Europeus.
Nesta nova divisão, cuja sedimentação coincide com a do capitalismo global, a Raça Branca corresponderia ao último grau de evolução da espécie humana, e as demais seriam estágios intermediários entre o Branco e outros primatas, como os macacos. Assim, à cultura e à tecnologia produzidas pelo Branco foram atribuídas características consideradas plenamente «humanas»: sensível, inteligente, elaborada, avançada. As produzidas pelo Negro, em contrapartida, correspondiam ao que é «animal»: selvagem, irracional, rústica, primitiva.
Este discurso vigorou como verdade científica hegemônica por mais de três séculos, e foi usado para justificar e legitimar a pilhagem e o genocídio dos povos autóctones ameríndios e africanos, o tráfico negreiro e a escravização de africanos e seus descendentes nas Américas. O Negro nascia, propagava-se tanto entre os eruditos quanto entre as classes iletradas, biologicamente dependente da domesticação e tutela do Branco. Sem a dominação do Branco, o Negro ficaria para sempre abandonado à sua «animalidade», incapaz de governar-se e de viver em sociedade, incapaz de «civilizar-se».
A seguir ao fim do tráfico negreiro e aos movimentos pela liberdade dos cativos nas Américas, africanos e afrodescendentes partiram desses pressupostos para tentar elaborar uma nova Razão Negra: uma filosofia e um pensamento comum às pessoas de pele negra em diáspora pelo mundo, validando, assim, a categoria Raça, ainda que de forma positiva. Passa a ser importante, portanto, valorizar a Raça Negra, resgatá-la da subalternidade, construir para ela um imaginário de força, independência e liberdade e um lar originário e mítico que coincide com o território africano.
É com esse propósito de comunhão e irmandade entre os Negros que surgem os movimentos pan-africanistas do século XX e o pensamento político, artístico e filosófico em torno da Negritude, como os de Marcus Garvey e Aimé Césaire.
Para Mbembe, contudo, estes movimentos falham, do ponto de vista do rigor intelectual, ao negarem a inferioridade da Raça Negra, mas não contestarem a própria ideia de Raça, a grande invenção colonizadora. Mbembe evidencia, então, o fardo e a ferida ainda aberta na construção da identidade do indivíduo Negro: a de ter que dar significado, seja ele positivo ou negativo, de exaltação ou depreciação, a este nome, este rótulo dado por um outro dominador. Para o filósofo camaronês, não há liberdade possível enquanto Negro e Branco ainda forem categorias que marcam diferença – mesmo que não hierarquizada – na espécie humana.
Do ponto de vista psicanalítico e filosófico, Mbembe defende que é prec iso abolir o paradigma da Raça para que Negros e Brancos possam enxergar-se solidariamente como seres humanos – e para que não sejam criados «novos Negros», novas parcelas da população mundial subalternizadas, exploradas e excluídas com base em uma cor de pele, religião ou hábito cultural.
Contudo, o estudioso não ignora que em um mundo em que as consequências do racismo são sentidas de forma material e psíquica pelos indivíduos socialmente percebidos como Negros, é, ainda, necessário levantar a questão da Raça para que seja reivindicada reparação histórica. Em resumo:
A proclamação da diferença é apenas um momento do projecto mais vasto, de um mundo que virá, de um mundo antes de nós, no qual o destino é universal, um mundo livre do peso da raça e do ressentimento e do desejo de vingança que qualquer situação de racismo convoca (p. 306).
Para que se alcance este «mundo que virá», é necessário enfrentar o momento atual, em que, sendo «uma construção social», a categoria Raça ainda segrega, exclui e mata, e ainda é fator que determina os espaços ocupados por Negros e Brancos e o valor das vidas de uns e outros.
De escrita rigorosamente honesta do ponto de vista da História e da Psicanálise (o pensamento de Mbembe é grande devedor do de Frantz Fanon), e também corajosa ao evidenciar as incongruências do pensamento pan-africanista e os desafios para a construção de um Humanismo não-eurocêntrico, Crítica da Razão Negra merece uma leitura atenta, embora às vezes dolorosa, por formular questões tão fundamentais quanto de difícil resolução, herança partilhada entre a descendência de colonizadores e colonizados, dominadores e dominados, Brancos e Negros desafiados a enxergarem-se mútua e solidariamente como humanos.
Texto de Bruna Ferreira
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