Em Deixa-te de Mentiras, traduzido por José Lima, Philippe Besson olha para o seu passado distante, algo talvez inesperado de alguém que conta já com quase duas dezenas de romances (dos quais muito poucos foram publicados em Portugal). A ânsia de recuperar a história do primeiro amor parece ser instigada pela morte de Thomas, a quem o livro é dedicado e que Besson retrata de forma íntima e em tom de elegia, com as lacunas na narrativa que advêm do secretismo da relação e da impossibilidade de conhecer Thomas por inteiro.
Thomas e Philippe cruzam-se de forma fugaz mas intensa nos anos 80, na escola, com a figura espectral da SIDA omnipresente, que chega pelas notícias ao meio rural onde vivem. A relação é mantida em segredo, os encontros são arranjados de forma discreta, o amor e o desejo sexual são plenos: para além de um primeiro amor e da descoberta do corpo de outro, é também um primeiro amor homossexual, onde a novidade, o desejo e o medo coexistem sob a forma de silêncio.
As imagem do caminho e da viagem surgem regularmente em Deixa-te de Mentiras. Thomas sabe que Philippe está destinado a sair da pequena vila onde vivem, deixando-o para trás, algo evidenciado pelo que parece ser uma distinção de classe entre os dois rapazes e uma aceitação de Thomas de que a sua vida já está decidida pela ordem natural das coisas e pela regra que se herda da família: da mesma forma que Thomas herdará a quinta onde trabalha, com a quinta herda também um sentido de genealogia, de necessidade de corresponder ao modelo familiar dos seus pais, a uma forma de viver dentro dos moldes, algo que o distingue de Philippe, que pode estudar e prosseguir um caminho bem diferente do seu. “Diz que para mim as coisas são simples, que tudo há de correr bem, que eu me hei de safar, está escrito, não há que ter medo, fui feito para este mundo, o mundo abre-me os braços. Ao passo que para ele é como se houvesse uma barreira, um muro intransponível, como se o interdito dominasse. Evocará às vezes esta questão do interdito, eu tentarei mostrar-lhe que está errado. Em vão” (56).
A homossexualidade é entendida como um desvio à normalidade, a tomada de uma estrada secundária que se afasta do que é expectável e correto. Há em Philippe o medo de seguir o caminho normal, o do casamento e da reprodução, o que o impele a ser bom aluno e a corresponder aos desejos dos seus pais. A escrita e a aceitação da sua identidade sexual surgem interligados como formas de resistência à mesma matriz heteronormativa a que Thomas cede.
O romance é pautado pela perda, quer amorosa quer de vidas, durante a crise da SIDA, e por uma sensação de inevitabilidade face à morte. Thomas, que “mora … nesta aldeia, sinónimo de morte” (52), onde a avó de Philippe morreu atropelada, é equacionado com imagens de perda e morte desde que surge no romance, como se já antes de a relação entre os dois jovens começar estivesse destinada à ruptura. O processo de escrever o romance torna-se assim na conjuração retrospectiva de uma relação e, ao mesmo tempo, de um jovem rapaz, que só existem como memórias: “Mais tarde hei de vir a escrever sobre a privação. Sobre a privação insuportável do outro. Sobre o desamparo provocado por esta privação … Hei de escrever sobre a tristeza que rói, a loucura que ameaça. Virá a tornar-se na matriz dos meus livros… Como se nunca me tivesse recomposto disso: o outro que se tornou inacessível. Como se isso ocupasse todo o espaço mental. A morte de muitos dos meus amigos, quando em plena juventude, agravará este distúrbio, esta dor. (…) Teria de aprender a sobreviver-lhes. E a escrita pode ser um bom meio para sobreviver. E de não esquecer os desaparecidos. De continuar o diálogo com eles” (45-6).
Thomas também desaparece precocemente da vida de Philippe, que avança, entre livros e novas relações, e inesperadamente será de novo levado para a adolescência, para Thomas, para uma época em que a homossexualidade ainda não podia ser articulada em palavras pelos jovens adolescentes, para uma época sem modelos ou ídolos, a não ser Proust, que Philippe requisita na biblioteca, para os anos 80 dos Wham!, da morte de Indira Gandhi, dos Jogos Olímpicos na Jugoslávia, que ainda existia, da greve dos mineiros no Reino Unido, da “sida que nos roubará a nossa tranquilidade” (94), quando encontra o filho de Thomas, que lhe revelará o passado do pai, preenchendo o vazio entre o adeus a Philippe e a sua morte.
Mesmo antes de se separarem, com a ida de Thomas para Espanha, Philippe tira-lhe uma fotografia e será assim que Thomas surgirá no romance: cristalizado no tempo, como evocação, um símbolo de ausência, para parafrasear Sontag. A fotografia dá corpo a Thomas, transforma-o numa imagem passível de ser recuperada, ao mesmo tempo que o retém num passado perdido. Como escreve Besson, “sei que Thomas só aceitou tirar esta única fotografia porque tinha percebido (decidido) que era o nosso último momento juntos. Sorriu para que eu levasse o seu sorriso comigo” (97-8). Mais tarde, ao ver o filho de Thomas, cujo rosto se assemelha de forma assombrosa ao do pai, a fotografia torna-se então na “imagem que não pode existir” (108), pois Thomas pertence apenas ao passado de perda e luto. Estamos agora em 2007, o espaço rural de Barbezieux, esse lugar que “não existe … não há ninguém capaz de dizer: conheço este lugar” (14) dá lugar a Bordéus, e se Thomas ficou agarrado à terra e à família, o seu filho Lucas saiu de França e parece incorporar o espírito de mobilidade e aventura que o seu pai reprimiu, mesmo que este tivesse, no final da vida, tentado um último gesto de ruptura e resistência contra a vida vivida em mentira: “Reconheço a avidez e a desenvoltura de quem cresceu num planeta estreito, para quem a viagem não é uma expedição, mas antes uma aventura comum, para quem a sedentariedade é uma morte disfarçada. Vejo o filho do mundo. Imagino que o destino teria sido provavelmente diferente se a mesma inclinação animasse o pai dele. Se ele não tivesse vivido noutro tempo. E se tivesse sabido libertar-se dos seus entraves” (112)
Lucas, com o rosto do pai, é um duplo de Thomas, uma materialização das possibilidades não concretizadas, do impasse entre ceder à censura e à auto-repressão ou aceitar viver a sua sexualidade. É diferente ser um homem (homossexual) nos anos 80, essa década em que o estigma e a homofobia foram exacerbados pelo medo do contágio e da SIDA, e em 2016, quando a narrativa é encerrada.
Deixa-te de Mentiras é um retrato sensível de um primeiro romance, assim como de dois jovens rapazes que tentam descobrir a sua sexualidade, dos entraves e pequenas conquistas que advêm de aceitar quem se é, assim como de uma época marcada pela ignorância e o medo, a repressão e o silêncio. É um longo olhar retrospectivo daquele que sobreviveu e também um retrato fragmentado de um homem, através de uma última fotografia, das memórias de um filho “desenraizado” pelo desaparecimento do pai que, já em vida, estava ausente, e pela carta que encerra o livro, de Thomas para Philippe, assim como das consequências de “se esquecer de si mesmo, e de regressar ao bom caminho, o caminho recomendado pela mãe, o único possível. Acabará ele por acreditar nisso? É essa a verdadeira questão. … Se a resposta é sim, então pode-se provavelmente seguir em frente. Se a resposta é não, está-se condenado à infelicidade sem fim” (114).
Deixa-te de Mentiras é uma poética elegia aos amores vividos em segredo, a um homem vencido pela auto-repressão e à memória dos que desapareceram, mas também uma lembrança dos obstáculos à felicidade e à liberdade sexual e um retrato cândido, íntimo e honesto do que é desejar um corpo inalcançável.
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