O Despertar da Primavera (escrita em 1891 e estreada em 1906 no Deutsches Theater de Berlim) é uma peça central da dramaturgia europeia, da autoria de Frank Wedekind. O subtítulo – “Uma tragédia da juventude” – não é dispiciendo, embora a estrutura clássica da tragédia não esteja presente. Mas lá chegaremos.
Benjamin Franklin Wedekind (Hamburgo, 1864 – Munique, 1918) foi um artista de múltiplos talentos (cantor de cabaret, dramaturgo, actor, escritor), tido por Brecht como “um dos grandes educadores da Europa moderna”. Dono de uma biografia recheada de eventos marcantes, na sua obra progressista procurou reflectir sobre o contexto social que o rodeava, com humor e sarcasmo em doses similares e a fidelidade possível perante a apertada censura da época.
A sua mãe Emilie Kammerer, cantora com alguma fama em S. Francisco no seu tempo, fugiu sozinha da Alemanha com 16 anos em direcção à terra prometida dos EUA. A irmã morreu na viagem, vítima de febre amarela. Emilie sobrevive a uma tentativa de violação e fica encarregue do sustento dos seus familiares com os rendimentos das suas actuações.
Já em S. Francisco, o médico alemão que a observou por exaustão, acabou apaixonado por ela. Os 24 anos de diferença não foram impedimento para que Friederich Wilhelm Wedekind, futuro pai de Frank, ficasse pelo beicinho. Casou com a jovem Emilie, na condição de esta deixar definitivamente a carreira nos palcos.
Com seis filhos, isolada num castelo na Suiça pelo ciumento marido, Emilie iniciou a sua prole nas artes do espectáculo, encorajando a criação de pequenas peças e numeros musicais em que também participava. Esta “formação”, complementada com a forte influência do círculo bastante culto de amigas da mãe, teve uma importância fulcral no período formativo de Wedekind.
Inicialmente, Frank cursou Direito, conforme os desejos do pai, até ao dia em que decidiu quebrar o elo e o pai deixou de lhe emprestar dinheiro. Deixou Zurique e abraçou diversos trabalhos: escrevia jingles para as sopas Maggi e dava uma mãozinha como secretário de um circo ambulante, enquanto se mantinha activo na escrita, com artigos, poemas e sketches na imprensa e buscava incessantemente o registo perfeito para a sua dramaturgia.
O Despertar da Primavera surge aos 26 anos, publicada a expensas próprias e enfrentando uma sociedade onde a temática da puberdade e todas as temáticas-satélite eram simplesmente eliminadas da esfera pública. Só década e meia depois viu a sua peça representada na capital Berlim (com algumas cenas censuradas), altura em que gozava já de fama considerável, como artista de cabaret satírico e escritor desafiador da rígida autoridade e moralidade do Estado imperial.
Esta e outras peças do seu repertório foram inspiração principal dos primórdios do expressionismo da época pré-I GM e mesmo durante a mesma, com cultores como Brecht, Sternheim e Dürrenmatt. Teve a felicidade de não ver chegar Hitler ao poder.
A PEÇA
A constrição complexa e inextrincável em que encontramos os protagonistas adolescentes em “O Despertar da Primavera”, contrasta habilmente com a linguagem de que se servem para (entre si e com o público, primeiro surpreso e depois divertido) comunicar o que fica por fazer e dizer, os ensejos, desejos e lampejos de alegria que os assaltam, o tédio imenso em que vivem imersos, sem hipótese de fuga, para além da solução mais radical: a morte que, inevitável e tragicamente, acaba por chegar.
A violência sobre os jovens chega frequentemente a vias de facto (com os próprios a encarem actos bárbaros com uma desconcertante naturalidade), pelos motivos mais mesquinhos, como a côr de uma fita… “Pero a mater tirou-me da cama pela trança e eu fui de patas ao chão. A mater reza ao serão ca gente… (…) E eu no chão na berraria e lacrimia. E depois entra o pater. Zás, arranca-me a camisa. Eu porta fora. E prontos. Que fosse desenroupada pela street se era o que queria (…) Rapei gelo. Abri a porta e chonei a noite num saco. (…) Desde que não sovem-me.”
O sistema social molda-os de forma brutal a um ideal oficial do cidadão germânico perfeito (levado ao limite da crueldade algumas décadas mais tarde), dotado de uma impecável formação académica e física, conjugada com uma moralidade estrita e uma conduta impoluta, mediante uma repressão omnipresente e (quase) omnisciente das pulsões adolescentes mais essenciais, como a descoberta do corpo (seu e do Outro), do sexo e a procura de uma identidade diferenciadora, na amálgama indistinta e cinzenta que constituía o espaço cívico da Alemanha imperial de finais do séc. XIX.
Nesta versão do clássico de Widekind, a nota mais pesada e trágica dos diálogos e da encenação é arredada para o subtexto, com a(s) identidade(s) definida(s) predominantemente pela via sexual ou sexualizante, focada na identidade de género, com a personagem central – Wendla Bergman – apresentada pela visão do Teatro Praga com uma identidade sexual e de género fluídas, assim como outras personagens fulcrais, como o defunto e ressuscitado Moritz Steifel.
Mas o grande tr(i)unfo desta reencarnação da peça de Wedekind é mesmo a linguagem utilizada, uma verdadeira língua original, síntese de retalhos das mais diversas origens, como explica o seu criador José Maria Vieira Mendes (JMVM) que, feita a tradução do original, e percebendo que dificilmente se conseguiria decorar e dizer, optou por reescrever todo o texto. “Além disso aborrecia-me”, admite. “Por isso, comecei, por simples diversão, a trocar palavras por outras e seguindo uma coisa que já vinha do Zululuzu ia questionando identidades duais ou estabelecidas socialmente – homem e mulher, homossexual e heteressexual. Se estamos a trabalhar a esse nível, também temos de questionar a identidade da língua. E o que é a língua portuguesa? É o que escreveu o Eça de Queirós ou o que se escreve nos jornais. No entanto, a língua que aprendemos e que ouvimos é constituída por imensos padrões – o padrão do Porto, de Guimarães, de Cascais, do Sul, da escola, do Eça de Queirós, mas também do Camilo Castelo Branco, do Camões, do Gil Vicente, da televisão ou da rua.”
Voluntária ou não, acaba por ser esta a única verdadeira libertação a que os jovens se podem dar ao luxo na acção que decorre perante nós, aqui levada ao extremo pelo trabalho de ourives de JMVM. Sem que se perca a fluidez da acção, criam-se espaços de comunicação com o passado e são abertas avenidas para paralelismos interessantes com a problematização do presente e do futuro. A dessacralização do texto (e obviamente do seu criador/dramaturgo) e a ausência da natural reverência ao original, tornam-no elemento “libertador e não uma condicionante ou um fardo que temos de aguentar do princípio ao fim”, como afirma Pedro Penim.
https://www.youtube.com/watch?v=YOxO2jBQptg
O resultado é um sucesso, com todo o elenco a tomar o texto com ganas de o fazer seu, sem se engasgar ou ter “brancas”, demonstrando que a aposta do CCB no Teatro Praga para abordar este clássico foi largamente recompensada por uma perspectiva inovadora e descontraída, sem perder o norte, mesmo quando toda a encenação, desenho de luz (Daniel Worm D’Assumpção), desenho de som (Miguel Lucas Mendes), cenografia (Bárbara Falcão Fernandes), figurinos (Joana Barrios com execução de Rosário Balbi) “conspiram” ávida e brilhantemente para um “fracasso” épico, mantendo-nos sempre na corda bamba entre a incredulidade, a gargalhada desabrida e o desconcerto, quando, por exemplo, após uma cena delirante de comicidade e burlesco, Wendla é violada ou lhe é feito um aborto, sem que (por ignorância, imaturidade, pressão desumana de um sistema que aposta neste bréu intelectual e sentimental) perceba ou saiba sequer o que acabou de lhe acontecer, tornando-a o “sacrifício aos deuses” desta estrutura autofágica, que destrói irremediavelmente os seus elementos mais frágeis e indefesos.
Moritz Steifel, o geek inocente e susceptível, assoberbado pelo rigor académico e pela descoberta avassaladora da sexualidade, simultaneidade com que é incapaz de lidar e o conduz ao fracasso quanto aos objectivos rigorosos que era forçado a atingir, acaba por suicidar-se. Só já morto-vivo, com o seu corpo literalmente separado da Razão (na cena final surge no cemitério como espectro a Melchior Gabor, segurando a cabeça debaixo do braço), encontra a redenção na derradeira deixa da peça.
Melchior Gabor, o “macho-alfa” do grupo, cujos pais foram inspirados nos próprios pais de Wedekind, acaba por espoletar os acontecimentos trágicos da peça, ao tirar virgindade a Wendla e iniciar Moritz Steifel nas maravilhas do sexo. No final, é colocado perante um dilema, entre o suicídio proposto pelo espectro de Moritz e o “que-se-lixe-a-vida-continua-e-as-possibilidades-são-infinitas” que o críptico Sr. Mascarado (verdadeiro Deus-ex-machina) lhe propõe.
Todos os pais e educadores são caricaturados como o coro histérico da sociedade da época. Juízes e executores, são satirizados e expostos sem apelo nem agravo pela leveza dos actos, decisões e argumentos que acabam por conduzir o incauto grupo na direcção da catástrofe.
Numa carta de Dezembro de 1891, Wedekind declarou ter como intento para esta peça “o retrato poético do fenómeno da puberdade, por forma a possibilitar um discernimento mais humano e racional entre pais e educadores”. Acabou por tornar-se uma denúncia, retalhada pela censura durante décadas, pois os eventos que expôs eram reais e do conhecimento geral, como o próprio disse à época: “Praticamente todas as cenas são retiradas da vida real. Mesmo as palavras (…) de que fui acusado de exagero e vulgaridade foram realmente proferidas.”
Associado ao sempiterno abismo da adolescência entre o individual e o colectivo, o choque de gerações, o feroz atrito os vícios privados e as públicas virtudes eram (e são) aqui expostos em todo o seu esplendor, a que Wedekind brilhantemente juntou uma desfragmentação da estrutura cénica “avant la lettre”. O espectáculo criado pelo colectivo Teatro Praga, conjugado com o texto de JMVM, mais não faz do que honrar este fantástico legado e, livrando-o do formalismo lexical, verbal e rítmico, hoje atávicos e desactualizados na sua versão original, traz luz, cor e comédia a este universo, exorcizando com a celebração da vida, os fantasmas daqueles que não puderem nunca ser quem realmente eram e, com eles, o espectro da Morte e da ignorância que, mais de um século depois, ainda persegue, em muitos lugares do Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos, aqueles que se atrevem a decidir abertamente e sem rodeios, quem querem amar e como querem viver, sem preconceitos ou pretensas grilhetas religiosas, sociais ou morais.
Espectáculos destes são o verdadeiro serviço público, que urge divulgar e incentivar, pela forma desempoeirada como envolvem o público na representação e motivam actores e equipa a superarem-se e surpreenderem a cada sessão, com todos os riscos e imprecisões envolvidos nestas aventuras.
Porque a Arte sem risco é um fardo, condenado a cristalizar-se, definhar e morrer, cheia de caruncho, “vacas sagradas” e certezas absolutas.
Para mais crítica de Teatro, leiam AQUI.