O regresso da escritora americana Patti Smith aos livros é sempre motivo de celebração, e não apenas pelos fãs. Neste Devoção, Patti repete o modelo utilizado no anterior M Train (Quetzal, 2016) e descreve o seu método de trabalho, num misto de devaneio romântico e digressão sentimental, com a rotina da escrita e o modo com esta necessariamente encaixa nos afazeres mais mundanos de uma artista de topo, como conferências e digressões literárias, para, no final, tudo se conjugar para o advento de uma nova obra literária. A homenagem aos livros, aos seus autores dilectos e a tudo o que os rodeia é constante, numa reverência que, apesar de limitar o escopo da sua escrita, cria uma empatia especial com o leitor, de súbito enredado na serenidade e paixão com que encara cada dia e cada folha em branco.
Composto por quatro capítulos, dois em registo pessoal, diarístico e peripatético, detalham as peripécias que levaram ao conto que titula o livro e nos restantes encontramos a história de Eugénia e Aleksandr, primeiro na versão impressa e depois na sua versão original, com todas as páginas manuscritas fac-similadas no capítulo “Escrito num comboio”. Entre as páginas, instantâneos a preto e branco dos locais visitados e dos objectos que Smith guarda para memória futura. Camus, Simone Weil e Modiano acompanham as suas diatribes reflexivas e geográficas, servindo de cenário e inspiração, alimento da sua afamada francofilia.
A Devoção do título é de ambos os protagonistas, mas nunca mútua ou sequer cruzada. Eugénia, forte e inteligente, cresceu com uma clara visão do seu futuro desde tenra idade: seria patinadora profissional, dona de um estilo inovador e indomável, treinado todos os dias em que tal lhe era possível, com todas as restantes parcelas da sua realidade apreendidas como uma nova pirueta ou uma nuance na sua coreografia de sonho. “De todas as línguas que conheci, a patinagem é a que conheço melhor. Uma língua sem palavras, em que a mente se deve subordinar ao instinto.” (61)
Aleksandr, um burguês poderoso, dominador e solitário, começa por segui-la até ao lago gelado onde treina, de início anónimo e, mais tarde, deixando uma prenda e confessando o seu amor e admiração à jovem ambiciosa, de imediato ciente do preço a pagar por aceitar os seus favores: abdicar do sua paixão, tal como a concebeu, por tempo indeterminado. Ambos desafiam o Destino, mas este choque de forças opostas tem em si o seu desenlace, algo que pressentem desde o começo, mas não impede a paixão.
Também Patti Smith se confessa devota à sua arte, à “busca de um vazio para preencher com palavras.” (117), inspiradas pelas grandes obras que sempre a impelem à acção. Porque todo o trabalho reside no percurso de busca e questionamento, as conclusões são escassas, porém inevitáveis: “Qual o sonho? Escrever alguma coisa de sublime, (…) que justifique as minha provações e os meus erros. (…) Porque escrevemos? (…) Porque não nos podemos limitar a viver.”
Longe da pungência de Just Kids, Devoção é um livro belo e apaixonado, como quase tudo o que a “musa” vai ditando a esta incansável exploradora da palavra.
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