Este Diário da Peste – O Ano de 2020 é a excepção à regra não escrita dos escritores portugueses (e não só): não se escreve sobre um evento real enquanto este ainda decorre ou mesmo depois da sua conclusão. Foi perceptível e ensurdecedor este silêncio aquando da crise financeira de 2011, por parte de quem involuntariamente acaba por ser a voz dos mudos, mesmo que por via ficcional. A crise pandémica global veio confirmar essa tendência. O argumentário que a defende diz ser difícil ou impossível fazer balanços e tornar literário e atemporal algo presente e pungente, e que, em Portugal, a escrita é uma profissão desvalorizada e sem a influência dos países anglo-saxónicos, mas perdeu-se uma excelente oportunidade para alterar o status quo. Gonçalo M. Tavares (GMT) demonstra a falácia destes e outros argumentos, com este “companheiro nos dias duros e nos dias feitos para ver./E tentativa de documento para que a memória bamba deixe um vestígio mais claro.”
São diversas as memórias do ano em que suspendemos a nossa existência como espécie, por unanimidade e sem resistência: os directos do Bruno Nogueira no Instagram, a ilusão de intimidade com as figuras públicas pelas redes sociais, o dia 13 de Março de 2020 em que foi decretado o confinamento obrigatório (o novo “onde estavas no 25 de Abril?”), o teletrabalho como regra. A subjectividade reina. O mérito de GMT é a busca incessante da regra na excepção, rasgando o real com um raciocínio indutivo, um novo método científico por via da linguagem como instrumento.
Diário da Peste é um almanaque v. 2020 de factos noticiosos de monta, absurdos e deslumbres, mas também pensamentos, divagações e citações avulsas num estilo despido e fluído (próximo da livre associação), sem resvalar para o registo despiciendo ou uma prova de esforço pedante e pretensiosa. Para isso sobram filósofos instantâneos a pronunciar-se sobre as múltiplas oportunidades do Apocalipse. Neste Diário é nosso o espaço das conclusões. Ao escritor-colector-cientista cabe apenas expor-nos às premissas e resultados da sua investigação.
Como é hábito em GMT, a palavra no Diário basta e basta-se, porque o enquadramento é-nos comum: os grandes dilemas existenciais com que lidamos – a vida, a morte, o sentido de ambas e a sua banalidade e relativização cíclica diante de situações extremas, no caso, o espectro que ainda nos ameaça. Mas também como tudo o resto se torna irrelevante e a nossa animalidade latente e instintos mais básicos se mostram sem filtros, independentemente do estrato social ou da responsabilidade/poder que nos é atribuído.
Impossível não evocar A Peste de Camus (um dos livros mais vendidos no período inicial de confinamento) e perceber o que dele colheu GMT. Como Camus na ficção pós-II Guerra Mundial, também estes foram relatos salvíficos enquanto duraram, quando as divergências explodiam e a confusão era regra. Apesar de todo o peso evocativo que trazem (de todo positivo), é com prazer e o alívio da passagem do tempo que os relemos no conforto do papel, para além da imaterialidade das vozes e imagens partilhadas, como o último reduto para escapar ao tédio, à solidão e ao medo. “Ler” uma mente a funcionar e a exprimir-se entre os desacertos com assertividade é um bálsamo.
Diário da Peste é um testemunho em tempo real da nossa história recente, mas também um acto de entrega e dedicação, coragem (porque “chafurdar” na dor custa) e superação pela Arte. Ver um escritor da nossa nacionalidade reclamar o seu papel na sanidade colectiva é tão raro quanto inspirador, tanto mais quando o consegue involuntariamente. A Cultura e a Literatura ainda não matam vírus, mas vacinam contra a letargia e a submissão.
Vídeo © Isabel Abreu da sua página Instagram
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