No âmbito da residência artística FORA, a companhia teatral in-Skené apresentou a peça Dilúvio no Auditório Municipal de Gondomar, num interessante exercício de descentralização das actividades culturais dos grandes centros urbanos e de, com parcos meios, procurar apresentar um espectáculo digno e atractivo para o público. O texto da peça é adaptado de “Ilha Flutuante” e “Noé” de Ricardo Neves-Neves, duas obras díspares tornadas complementares, numa estranha continuidade absurda.
Entramos na sala já repleta de névoa, evocando uma desolação pós-apocalíptica. Na escuridão, revelam-se duas personagens inanimadas (Ana Pessoa e Sara Neves) e um piano com o seu executante (Paulo Pires). Desconcertante a imagem do imaculado piano de cauda neste cenário, presença inusitada compensada pela excelente música que foi pontuando todo o espectáculo. As duas personagens espectrais dialogam sobre o dilúvio que se aproxima, com chama e entrega, e um Noé mais pós-moderno organiza a viagem em direcção à terra prometida, a famosa “city upon a hill”: a América, where else? Pelo caminho, ficam instantâneos bem conseguidos, com uma iluminação precisa que revela os detalhes das sombras em contraluz e a imagem marcante do globo terrestre empurrado para o fundo de um tanque de água azul, que deixa pouco espaço à imaginação. A dupla esbarra com uma vedação alta, de aparência intransponível, que acaba derrubada com estrondo, criando a ligação à segunda parte da récita, baseada no cómico “Ilha Flutuante”. Actuações interessantes, com bons momentos, mas com alguma desadequação nas inflexões vocais e na gestualidade.
https://vimeo.com/326015172
Aqui passamos de uma tentativa de fim do Mundo, com direito a redenção final, para uma parábola da nossa rotina, em que mascaramos de livre arbítrio o constante condicionamento a que estamos votados para sobreviver numa economia capitalista. A mesma dupla de actrizes, com parcos meios e adereços, debita de forma convincente um texto a espaços bem divertido, a que juntam uma convicção irónica e até coreografias dos nossos tão familiares avanços ínfimos, apenas para, pouco depois, regressarmos ao local de partida. Uma encenação inteligente e engajada, que nos deixou curiosos de como poderia ser esta produção com outros meios e espaço para “voar”.
Com resultados de consistência variável, e clara prevalência para esta segunda parte, mais ao encontro do contexto dramático onde foi levada a cena, é no entanto de louvar o trabalho de encenação do Diogo Freitas, onde são já perceptíveis sinais de sensibilidade e inteligência que a experiência certamente se encarregará de refinar. Uma iniciativa louvável e necessária da Câmara Municipal de Gondomar e um bom começo para um projecto que se quer continuado e em crescendo por muitos e bons anos. Haja vontade e disponibilidade de todos os agentes envolvidos nesta empreitada. O público que vive afastado dos grandes palcos precisa destas bolsas de oxigénio e é da prática que nasce a perfeição.
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