Uma das mais basilares regras de todo o texto dramático, na sua aceção teórica, é a de que este propõe materializar-se numa lógica espetacular. O palco, a presença de um público, a cenografia, a luz, o som, são imanências do próprio texto escrito, adaptadas pelo encenador de forma mais ou menos conservadora, no sentido denotativo da palavra: conserva o texto e as regras que ele impõe (total ou parcialmente), ou não. Na encenação de João Brites e d’O Bando do épico dantesco, a que assistimos no âmbito do FITEI, no Teatro Carlos Alberto do Porto, encontramos uma premissa desafiante, mas não por isso menos entusiasmante: o texto original não entra nos limites daquilo que consideraríamos tradicionalmente um texto dramático. Neste sentido, espera-se do encenador que adapte o texto a partir de um telos, um objetivo, que o impele a escolher aquela obra para lhe incutir, então, o caráter espetacular.
A primeira conclusão a que chegamos após alguns minutos de espetáculo é a de que não há um telos particular identificável por parte do encenador: o texto soa-nos particularmente hermético, os figurinos e a cenografia de tons avermelhados, a música de tonalidade épico-dramática, a lógica espiral da escada em círculos, nenhum destes elementos desafia a óbvia imagética que qualquer ocidental tem do que é o Inferno, ou do que sabe um especialista sobre a estrutura da obra de Dante. Logo ao entrarmos por detrás do palco, fazendo parte, por momentos, do caminho dos condenados, pensamos de imediato que se tratará, portanto, de uma encenação conservadora.Repetimos, trata-se aqui do significado denotativo da palavra, sem qualquer julgamento. Porém, uma encenação a que chamaremos, tendo em conta o até aqui exposto, de conservadora, implica um conjunto de consequências: em primeiro lugar, e segundo o folheto do espetáculo, o encenador considerara a mais reconhecida tradução da Commedia, a de Vasco Graça Moura, como “arcaizante e exuberante”, dificultando a sua aplicabilidade enquanto texto dramático. Ninguém duvidará deste facto, mas a opção por um texto alternativo à empresa que é a obra de Graça Moura, que não o torna menos curto (segundo o encenador, mais de metade do texto original d’o Inferno), e que obriga o espectador a cerca de duas horas e meia de espetáculo sem fruição da beleza lírica de que um texto clássico deste calibre está revestido, não nos parece coerente. O exemplo mais claro será o de Shakespeare. Vamos vê-lo para desfrutar do poder da palavra, pese embora o seu possível hermetismo para o espectador contemporâneo, mas não a sua possibilidade de leitura da sociedade dos nossos dias. Simplificando: uma encenação que se baseia no texto de Dante, ou é o texto de Dante na sua forma mais grandiosa, ou é uma encenação que desfragmenta o texto e o adapta às aflições do público que se propõe a assistir.
O que nos leva ao segundo aspeto: o quê melhor do que o Inferno de Dante para abordar o “confronto inevitável com os universos concentracionários do nosso tempo”, como afirma Graça Moura na introdução à sua tradução? O encenador sabe a resposta, ele próprio a deu, por altura da estreia no D. Maria II, em maio: este “texto fundamental e fundador da Europa dos exílios, e com uma capacidade de falar de uma forma sub-reptícia sobre o que acontece nas políticas e nas atrocidades” permitiria “perceber que o mesmo tipo de problemas se mantém”. Não conseguimos, infelizmente, observar a denúncia da contemporaneidade destes problemas na encenação d’O Bando, sobretudo com o ululante potencial político-social da Europa em 2017: de quantos Carontes é feito o Mediterrâneo dos condenados ao inferno do nosso século? Que Fúrias vingativas atormentam os europeus do nosso tempo? Fundamentalismos religiosos, atentados, austeridades económicas, todo um sortimentoalargado de matérias, que a encenação podia ou não chamar a si, por exemplo no aspeto, a nosso ver, interessante, da divisão das personagens em duas metades, uma de pulsão de vitimização e outra autoritária, uma ideia pertinente e brilhantemente executada pelo elenco. Não o faz, embora o encenador suponha que sim. Pensará tê-lo feito com as imagens projetadas na parede anterior do palco de ruas aleatórias de Lisboa? Será isto o estímulo à associação de que o Inferno “está no meio de nós”, como referia também numa entrevista aquando da estreia? Ficamos sem o saber, mas parece-nos que deixar o trabalho de contemporização à leitura quase arbitrária do público, é, na nossa perspetiva pessoal, uma tarefa demeritória, embora comum em algum tipo de encenação.
Salienta-se o trabalho dos atores, especialmente o de José Neves enquanto diabólico Nemrod, e de Ana Brandão, a única Fúria que não nos deixa furiosos com a cacofonia insuportável dos berros operáticos do trio vingativo. O trabalho exímio tanto físico como vocal e linguísticodestes dois atores, deixa-nos adivinhar, considerando a experiência que têm, que nos pareceu mais mérito próprio do que do encenador.
O objetivo do grupo é levar a palco, na íntegra, o tríptico da Divina Comédia – Inferno, Purgatório, Paraíso. Esperamos, não muito convencidos, pelas próximas duas partes.
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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