Abre-se o pano. O cenário é simples: dois separadores altos em ferro, um em tons ocre e outro cinzento, delimitam a sala de estar da casa parca em mobiliário. À direita da boca de cena e num plano mais baixo está uma cadeira vazia. É desse local que o narrador da peça, o advogado Alfieri (António Simão), contará a história trágica de Eddie Carbone, o protagonista.
Estamos em Red Hook, nos anos 50, numa “espelunca virada para a baía, a sul da ponte de Brooklyn”. Eddie (Américo Silva) é um italo-americano de primeira geração que ganha a vida na dura estiva. Ele e sua mulher Beatrice (Joana Bárcia) acolheram a sobrinha Catherine (Vânia Rodrigues) em sua casa ainda criança, depois da morte prematura da cunhada, e educaram-na como filha do casal. A rapariga, agora com 17 anos, tenta libertar-se do protecionismo excessivo do tio, convencendo-o, com alguma dificuldade e graças à mediação preciosa da tia, a deixá-la ir trabalhar como estenógrafa nos escritórios de uma empresa de canalizações, lá para os lados dos estaleiros.
Ao mesmo tempo, a família prepara-se para receber dois primos de Beatrice, imigrantes ilegais que fogem da fome e da doença que assola a Sicília em busca de trabalho e de dinheiro que lhes permita sustentar a família e viver com dignidade. Marco (Bruno Vicente), o mais velho, tem um ar de camponês forte e entroncado habituado ao trabalho braçal, uma postura contida, um olhar ligeiramente desconfiado e uma voz serena. Casado e pai de três filhos a passar fome (o mais velho tuberculoso), espera regressar ao seu país em talvez quatro, cinco, seis anos; enquanto isso, mandará semanalmente dinheiro para a família, tanto quanto lhe for possível poupar. Rodolpho (André Loubet), o mais novo, é delicado e de voz fina (é barítono), tem cabelo louro e postura desenvolta e tem intenções muito diferentes: ele vem em busca do sonho americano, quer ficar e enriquecer – “Eu cá quero ser americano!” Encanta imediatamente Catherine, que se enamora do “lourinho”.
Está criado o contexto para a sucessão de acontecimentos crescentemente dramáticos que culminam na tragédia final. O ciúme de Carbone pela sobrinha – “Não foi para este tipo que a criei” –, a suspeição relativamente às intenções do italiano – “Ele está é a ver se dá o braço ao passaporte” –, o conflito cultural – “Não percebo este país” –, a necessidade de Eddie de limpar a honra – “Quero o meu bom nome de volta!” –, todos estes ingredientes fazem da peça Do Alto da Ponte uma experiência memorável.
O ambiente a lembrar os contentores típicos dos estaleiros, o jogo de luzes, a modéstia do mobiliário da casa, o vestuário simples, tudo transporta rapidamente o espetador para a América do pós-guerra, para Brooklyn, para a pobreza daquelas gentes, para o dia-a-dia de trabalho árduo da estiva. As personagens, essas, dão-se a conhecer pelos gestos, pela postura em palco e pela linguagem não-verbal que utilizam. Depreende-se o estado de espírito de Catherine pelo simples menear da anca. A serenidade, sensatez e equilíbrio de Beatrice transparecem no seu tom de voz. A embirração de Carbone com Rodolpho fica clara nos seus olhares, na impaciência das suas falas e na sua postura. A tensão violenta contida a custo por Marco evidencia-se na ameaça velada do episódio da cadeira, que ocorre momentos depois de um pedido de perdão: numa linguagem não-verbal perfeita das duas personagens (dos dois atores), a postura ameaçadora do italiano transforma-se num sorriso de triunfo, ao mesmo tempo que o rosto de Eddie se vai fechando e os seus olhos deixam perceber o medo que o invade.
Alfieri vai ajudando o público a entender o desenrolar da história. Quase sempre em palco, converte-se um par de vezes de narrador em personagem e contribui, com o seu aconselhamento jurídico, para o desfecho da história, que pressente e tenta evitar.
Uma traição motivada por uma decisão irrefletida, um arrependimento, uma tentativa gorada de remediar o mal feito erro – O bairro está cheio de quartos para alugar. Tira-os dessa casa! É tarde. É chegado o clímax. Ouve-se uma batida na porta que a todos gela. Segunda batida, um grito – Abram! – e tudo se precipita. O ruído e os gritos que se ouvem ilustram exemplarmente a violência do que acontece fora dos olhares do público. Enquanto isso, Beatrice, revela com o olhar tudo o que sabe – Meu Deus, o que foi que fizeste?
Na cena final, já o público está ciente de que a catástrofe é inevitável, o fundo da cena cobre-se de vermelho. A luta acontece, ainda que as armas sejam apenas imaginadas. Não são precisas: a tensão de toda a sala e o bailado das personagens são suficientes para que o público entenda, no momento exato, que tudo está consumado. Tudo fica imóvel, como se de uma fotografia se tratasse, enquanto o vermelho do fundo se vai cobrindo de negro.
Fecha-se o pano, depois dos merecidos aplausos finais. A forma transparente como os atores interpretaram o texto deixou no público a compreensão plena da humanidade das personagens, dos seus erros e virtudes e do dilema moral subjaz ao enredo. E isso, parecendo pouco, transforma esta produção dos Artistas Unidos, com encenação de Jorge Silva Melo, num espectáculo emocionante.
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