A ideia do gémeo é um poderoso instrumento metafórico. Entre dois gémeos, existe uma unidade que se perdeu, uma coesão partida a meio, dividida para sempre. Dessa unidade virtual, arrancada ao mesmo ventre, criadora de duas vidas só aparentemente espelho uma da outra, sobra uma tensão sem paz. Alimentada e nutrida, ao longo do romance de Milton Hatoum, ela mais não fará do que crescer e intensificar-se.
Dois Irmãos é, numa das camadas que nele se podem detectar, a história de Omar e Yakub, irmãos e inimigos insanáveis, desde sempre nas suas vidas, e até ao fim da narrativa. É a própria mãe quem o exprime mais integralmente, perto das últimas sequências do romance – «Os dois nasceram perdidos.» (229) Só no momento em que quase todo o livro se desdobrou, nas suas várias facetas, é que esta espécie de fatalismo verdadeiramente se explicita. E é só quando todas as armas se usaram, e já tanto se guerreou, que certos dados assomam, e é provável que sejam determinantes – mas, mesmo esses, só em parte hão-de figurar. Mantidas em suspenso, essas informações, sonegadas até ao fim, garantem que a tensão seja uma constante ao longo de todo o romance. Por exemplo, a identidade do narrador só a escassas páginas do fim se desvela, e até à última linha permanecerá um mistério (até para o próprio) a identidade do seu pai – factor crucial num romance cujo território é a família e a construção da identidade pessoal e grupal. Até o nome verdadeiro da mãe será introduzido, do modo mais inconspícuo, não muito antes dos momentos derradeiros do livro. Esta não é, diga-se, uma indicação burocrática, como se viesse de qualquer registo civil, mas uma abertura para tonalidades da personagem que o romance deixara ocultas ou, quando muito, apenas latentes.
O vestígio bíblico no romance começa, obviamente, na presença dos dois irmãos. O mais óbvio seria pensar nos filhos de Adão e Eva. De resto, essa analogia é explicitada em Os Dois Irmãos – «Não queria morrer vendo os gêmeos se odiarem como dois inimigos. Não era mãe de Caim e Abel.» (p.221) Ironicamente, Zana era, realmente, mãe de um Caim e de um Abel cujas vidas decorrem em meados do século XX. E, no entanto, o romance de Milton Hatoum não segue, de facto, o texto bíblico. Desde logo, estes irmãos são gémeos (o que não sucede, pelo menos explicitamente, no caso de Caim e Abel), o que faria pensar antes em Jacob e Esaú. Há mesmo alguns sinais mais subtis (e até contraditórios), como o facto de Omar, o mais novo dos gémeos no livro de Milton Hatoum, ser descrito como peludo, enquanto na narrativa bíblica é o mais velho, Esaú, quem assim é apresentado. Minudências à parte, os paralelos mantêm-se: conflitos pela primogenitura, a preferência da mãe pelo mais novo (elemento comum à Bíblia e a Dois Irmãos), maquinações recíprocas. Rivalidade fraternal, em suma – mas elevada à enésima potência. O próprio romance evoca esse paralelismo bíblico, de forma por vezes irónica, como quando Yakub deixa escrito: «se houver violência, será uma cena bíblica» (p.221). O vaticínio, talvez seja escusado dizer, cumprir-se-á.
A acção principal de Dois Irmãos decorre em Manaus, ao longo dos anos 40, 50 e 60 do século passado. Uma família de origem libanesa, como a do próprio Hatoum – que nasceu e se criou em Manaus no seio de uma família originária do Líbano –, tem a particularidade de ter um pai muçulmano e uma mãe cristã, divisão religiosa ultrapassada com o casamento segundo a religião de Cristo – uma fé que vincará a sua presença de forma marcante em todo o livro. Trata-se de um começo de cisão que se «resolve», mas nunca, propriamente, se sanará por completo. Porque, no fundo, os alicerces da casa – onde rapidamente se percebe uma metáfora para a família, em Os Dois Irmãos – são, desde o início, pouco coesos. Se a questão religiosa aparentemente fica sanada, a verdade é a paternidade estava longe dos projectos e dos desejos de Halim; e é Zana quem decide pelo casal que a família apenas se completaria com a chegada de três filhos – premonição que o futuro viria a confirmar: além dos gémeos, o casal teve, ainda, Rânia. Curiosamente, todos os temores do relutante pai se verificaram. Sim, a chegada dos filhos havia de acabar com o sossego do casal, que vivia numa harmonia com tanto de improvável quanto de usufruída; sim, o nascimento dos rebentos traria consigo a quebra da sua intimidade – e o fim de tudo. Embora o casal se mantivesse junto até ao fim da vida de Halim, tal aconteceu à custa de um ressentimento que o pai arrastou penosamente até ao fim de uma existência repartida de forma desigual entre o azedume e um amor de perpétuo adolescente pela mulher.
A exasperante bulha entre os irmãos acende uma irritabilidade que se perpetua ao longo do tempo do romance e atravessa as fronteiras do plausível. Porque esse dado humano e literário é muito menos uma técnica do que um sintoma. Ele é apenas um dos sinais mais poderosos que Dois Irmãos emite. Verosimilhança, «identificação» com personagens, cenários ou casos, veracidade das tramas – todos estes componentes acabam por recuar, enfraquecidos, se tomados individualmente. Porque a simples verosimilitude do romance parte de pressupostos deliberadamente porosos, por onde perpassam a fantasia e a irrequietude de uma efabulação que tem tanto de conturbado quanto de alegórico. A falácia que consistiria em fazer da narração um espelho para o leitor sucumbe perante uma análise mais firme. E no entanto, se tomados em bloco, todos esses aspectos são como uma armadura cujas peças finalmente encaixassem. O que torna o romance de Milton Hatoum essa construção admirável que faz dos dados da sua equação um elemento dinâmico, semelhante a um organismo vivo, um mecanismo oleado na perfeição. O enredo, na sua verdade fundamental, acaba por ser um pretexto engenhoso para uma causa maior – e a sua «veracidade» acaba por importar menos do que uma ideia de mensagem que transcenda esse nível inicial de sentido. Por muito que a criação da verdade, nesta ficção, «iluda» o leitor, parece ser mais importante, em Dois Irmãos, a mensagem simbólica, alegórica. Uma leitura profunda e lúcida do ser humano como animal ambicioso por excelência, capaz de um egoísmo cego diante de todo e qualquer argumento: justiça, razão, laços de sangue.
A relação entre Omar e Yakub começa rasgada como uma ferida que nunca mais se curasse. E as cicatrizes serão reais, não só figurativas, neste romance. Como a que lacera o rosto do irmão mais velho, por causa de uma figura feminina disputada pelos gémeos. E será, precisamente, a vítima no conflito fraternal a parte a ser castigada. Será Yakub a rumar ao Líbano, num exílio familiar forçado, de que regressará, naturalmente, transfigurado (autonomizado em relação à família, cioso da necessidade de construir o seu próprio caminho, alheio ao núcleo familiar). Com a impulsividade irracional de um afecto que até ao fim estará entre o enternecedor e o malsão, a mãe há-de querer sempre proteger o seu Caçula – sintomático que Omar receba sempre este tratamento até ao fim –, que permanece junto a si, subjugando tudo e todos à sua tirania. Os efeitos desse círculo mais que vicioso serão a criação de um ser de um egocentrismo aberrante, monstro de vaidade e capricho. «Mimem esse crápula até ele acabar com vocês!» (p.123), será o resumo certeiro de Yakub acerca do irmão, num dos seus ocasionais regressos à casa familiar. Porque o gémeo mais velho se tornará, ironicamente, um caso de sucesso. Longe do sufoco do amor maternal, Yakub torna-se independente, emancipa-se, faz-se um engenheiro coroado de êxitos, um ás na sua área. E, no entanto, nunca será o preferido.
À medida que o romance vai avançando, há três variáveis que se intersectam, por vezes se confundem, são sinais do mesmo fenómeno, ou vão em direcções divergentes. Um desses vectores é o narrador de Dois Irmãos, que é uma das criações mais engenhosas de Milton Hatoum em 36. O escritor teve, certamente, cuidados extremos na sua composição. Subtilíssimo e discreto no seu ofício, o narrador revela apenas o essencial – e de si quase nada deixa vir ao de cima. É pouco antes do meio do romance que o leitor percebe – porque o próprio só então o verbaliza ou só então o entende – que o seu pai é um dos gémeos; ficara já assente que a sua mãe é Domingas, a empregada da casa. Nael de seu nome (como saberemos a menos de 30 páginas do fim), o narrador é, portanto, uma figura de fronteira, no limite, como se estivesse de passagem. Dorme num quarto dos fundos da casa, junto aos aposentos da mãe; serve, de forma mais ou menos intermitente, a família, que o aceita, mas não como um dos seus (que, realmente é); filho da empregada – e «filho de ninguém» (p.242), como se lerá, por não ficar a saber qual dos gémeos o gerou –, acaba por herdar parte das funções da mãe, das quais o agregado familiar abertamente tira partido. Esse modo subalterno de viver dá-lhe não só um sentido muito agudo das injustiças (Domingas é «índia», tendo sido «dada» à família, numa espécie de escravatura mitigada e transfigurada, mas ainda com direitos escassos e uma liberdade mais que condicionada) e do papel de cada uma das personagens na casa – e na cidade em redor –, mas também uma dolorosa consciência da sua própria condição. Os outros dois ingredientes são a cidade e a casa. Esta, que forma uma metáfora dinâmica da própria família, sofre uma metamorfose gradual cujo destino final apenas finíssimos indícios antecipam – «O abismo mais temível estava em casa» (p.43). Quando a derrocada do espaço doméstico é facto consumado, o narrador registará, retomando aquela imagem: «Quando ela desceu, a casa parecia um abismo.» (p.244) Todas estas dinâmicas não decorrem em vão em Manaus. A cidade do Amazonas não é apenas a cidade natal do autor de Dois Irmãos – o que, sem surpresa, contribui enormemente para o seu conhecimento de causa daquela realidade –, mas um tecido urbano que esteve sujeito a transformações radicais. Mutações que o romance repercute, sempre sobriamente. Reestruturações profundas na orgânica citadina conduziram a uma cidade que o próprio autor já descreveu como cosmopolita – mas a situação actual cedeu lugar a uma urbe de grandes clivagens, onde os «cortiços» florescem lado a lado com casas afluentes ou remediadas, uma ruralidade persistente e, sobretudo, muita precariedade: até na vulnerabilidade das habitações contra a violência das chuvas. Ao mesmo tempo que a cidade se moderniza e «agiliza», mais aberta à iniciativa estrangeira, a casa da família torna-se obsoleta, quase uma ruína, cheia de espectros dos que morreram ou daqueles que, embora vivos, deixaram, simplesmente, de integrar aquele microcosmos, ou de fazer nele qualquer sentido. Mas a cidade não será apenas o receptáculo dos avanços da economia e da técnica. A Ditadura fará as suas vítimas no pulsar da cidade; o policiamento cego e desmedido das vidas terá a sua expressão mais pungente no assassínio do Professor Antenor Laval.
Dois Irmãos é uma exploração notável de um conflito pessoal, familiar, que a escrita de Hatoum torna universal e humana, mais do que individual. Centrado no universo de uma família marcada pelo desequilíbrio e o excesso, o romance ergue-se diante de um panorama complexo de amores desorbitados, avassaladores, deslocados. São relações destabilizadas, iníquas e transtornadas; são forças contraditórias e destruidoras, as deste agregado. No fim, quedará apenas Nael. Ocupante provisório e deslocado de uma casa que ameaça ruir e que será sucedida por outras ocupações do espaço, ditadas pelo progresso e o avanço da história. Omar e Yakub representam as possibilidades e os limites do humano. Por ambos passam o egoísmo, os fossos em que cai o amor, a vertigem da «vontade de poder». Por ambos passa, em suma, a humanidade de cada um de nós.
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