Começamos pelo fim. Alguém dizia, na plateia: “Eu gostei. Foi diferente”.
Numa altura em que fazer diferente parece cada vez mais difícil, este comentário é revelador do entusiasmo que a comédia Don Juan Esfaqueado na Avenida da Liberdade gerou numa plateia especialmente jovem e inquieta, na matiné de Domingo. A sala Mário Viegas, do Teatro São Luiz, encheu-se com um público ávido de gargalhada e, na verdade, o vigor da representação não defraudou essa expectativa. A provocação, pejada de duplos sentidos, de uma conotação sexual sempre latente e, claro, algo previsível na personagem de D. Juan (essa figura lendária, que continua a povoar a literatura, um conquistador que deixa atrás de si um lastro infindável de corações partidos), foi a chave para o riso indiscreto.
Este Don Juan não foge à imagem a que vulgarmente o associamos, tanto mais que até tem dificuldade em nomear os nomes das mulheres cujo coração arrebatou, qual arquétipo desse machismo empedernido em que a donzela fica refém de bajulações e artifícios de verborreia. Que absurdamente ingénuas todas elas. Ridículo no seu charme aparentemente incompreensível, tomado de assalto pelo ator Tónan Quito, é uma caricatura do D. Juan do passado que, anos depois, parece inadaptado à emancipação feminina do presente. Sim, este D. Juan é o tal que persiste embrulhado nos seus enredos e mentiras, que tanto fascinam Pedro Gil, diretor artístico do espetáculo e que tem uma das interpretações mais deliciosas da peça.
Se em dias de chuva, decidirem trocar o sofá por uma comédia fora, mas dentro de portas, espera-vos um humor inteligente que apostou na expressão corporal, em dinâmicas de improvisação que se traduziram, no palco, em ritmo, um ritmo feito, sobretudo, de boas interpretações, enérgicas, explorando a identidade e o potencial de cada um dos atores.
Não sabemos como a estátua do comendador é assim tão importante, nem a razão pela qual a visita de Pedro Gil ao museu do Aljube, onde o seu avô foi preso durante o regime salazarista, foi impulso para este espetáculo. Don Juan, como se dizia em palco, não leu Marx, nem terá assistido à invenção do sabonete e, talvez, recauchutado, seja apenas um falhado, tão refém da mentira quanto do facto de ser, na verdade, absolutamente desinteressante, pelo menos aos dias de hoje, ou para uma mulher de hoje, que como nós o acha apenas uma piada.
Nos momentos memoráveis, temos a Rita Bastos, a amante com sotaque alentejano, as subtilezas da Raquel Castro e aqueles saltos de macaca, na cortina, da Filipa Matta; mas, sobretudo, aquele ‘engalfinhamento’ de mulheres desesperadas de atenção (do qual Pedro Gil, versão mulher, também participa). Vale a pena ver a Filipa Matta, o Miguel Loureiro, o Pedro Gil, a Raquel Castro, a Rita Calçado Bastos e o Tónan Quito em cena. Talvez fosse possível otimizar o todo reduzindo um pouco a duração do espetáculo, mas isso é mero detalhe. Ainda sobre interpretações, porque é muito disso que vive esta peça, não há como resistir a um elogio rasgado a Miguel Loureiro, impressionante em cada cena, em cada detalhe, em cada expressão e um dos responsáveis pelas gargalhadas mais sonoras. É vê-lo chegar e preparar as bochechas.
Assistam e divirtam-se. Continua em cena até 2 de Dezembro.
Foto © Mariana C. Silva
Por defeito profissional, Joana Neto escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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