E se as personagens teatrais ganhassem vida própria? É desta premissa que parte o texto de Seis Personagens à Procura de um Autor, de Pirandello, para colocar debaixo dos holofotes as grandes questões do teatro moderno. E é esta pergunta que Victor Hugo Pontes recupera em Drama, em perseguição duma outra ainda mais disruptiva: pode o Movimento sobrepôr-se à Palavra na pretensão de levar um texto para cena?
Victor Hugo Pontes demonstra que sim, colocando-se na vanguarda da Dança Contemporânea em Portugal e elevando a sua reconhecível linguagem a um novo patamar de expressão. Hoje esbatem-se as fronteiras que delimitaram as diferentes disciplinas artísticas durante tanto tempo, em busca do valor intrínseco da obra de arte, e há que colocar o devido ênfase nos seus protagonistas. Mesmo que linguagem aqui empregue possa recair, por vezes, num certo exagero do Movimento demasiado mimetizado (opção cuja necessidade não será consensual), depois de Drama dir-se-á que a Dança pode bem ser território (ainda) fértil para explorar as subtilezas da meta-linguagem do Teatro Contemporâneo. Ou pelo menos para lhe acrescentar (o que já não será coisa pouca).
Reprodução verosímil do texto original, também aqui o público começa por ser intruso de um ensaio a decorrer (ilusão inteligentemente exacerbada pelo subtil jogo de luzes), interrompido pela entrada em cena de 6 macabras personagens. É neste ponto que percebemos o potencial expressivo da Dança na adaptação de um texto: tanto o drama de base – o que deixa órfãs aquelas personagens, que por negligência do autor se vêem votadas ao esquecimento e decidem, porque têm vida própria, levar a cena as suas próprias histórias – como os pequenos dramas individuais que compõem cada uma daquelas personagens são elevados ao grotesco, atingindo-nos de forma visceral. De realçar os apontamentos humorísticos que pontuam o ritmo desta narrativa, pegando nesse grotesco para dele extrair outros significados, e assim contribuindo para a construção de um espectáculo dinâmico.
A disputa pelo palco dá-se a partir dessa invasão: quem o merecerá mais? Pois, quem melhor representar a história. Serão as próprias personagens, em controlo da sua própria narrativa (ideia necessariamente apelativa para todos os autores que conheçam de perto o labor de lhes dar vida), os actores, que, fingindo, serão capazes de um singular entendimento do palco que assim permita a necessária verosimilhança, ou em última análise o encenador, preso entre estes dois mundos? Não importa tanto a resposta, como a reflexão em si, aqui cristalizada com mestria num espectáculo pungente, onde a cenografia e o desenho de luz capturam magistralmente o público para dentro da acção. O que é ficção e o que é realidade? Seremos nós, os que assistimos, mais reais que aquela família, que disputa com um elenco exímio o espaço para contar as suas histórias? As fronteiras vão caindo, uma por uma, colocando-nos bem no centro, quase debaixo dos mesmos holofotes.
A música original, de autoria de Rui Lima e Sérgio Martins, e a actuação ao vivo de Joana Gama são importantes alicerces deste Drama, cruciais na unidade da narrativa, assim como a opção de conferir um papel cénico a esta mesma performance. Os apontamentos são subtis, mas muito bem conseguidos, o que a juntar à presença de Joana Gama, artista cada vez mais consagrada na cena artística portuguesa, eleva este espectáculo a um outro patamar.
Como descrever este Drama, então? É uma obra que podia com facilidade ficar-se pela intenção e de caminho limitar-se a semear questões. Mas Drama é um espectáculo imperdível para os que se prestam a questionar o papel da Arte.
Ficha Técnica
DIREÇÃO E COREOGRAFIA Victor Hugo Pontes
CENOGRAFIA F. Ribeiro
DESENHO DE LUZ E DIREÇÃO TÉCNICA Wilma Moutinho
MÚSICA ORIGINAL Rui Lima e Sérgio Martins
PIANISTA Joana Gama
FIGURINOS Cristina Cunha e Victor Hugo Pontes
INTERPRETAÇÃO Ángela Diaz Quintela, Daniela Cruz, Dinis Santos, Félix Lozano, Pedro Frias, Valter Fernandes, Vera Santos e participantes da comunidade local
APOIO DRAMATÚRGICO Madalena Alfaia
ASSISTENTE DE DIREÇÃO João Santiago
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO Joana Ventura
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO Mariana Lourenço
ESTAGIÁRIA Liliana Oliveira
APOIO RESIDÊNCIA ARTÍSTICA Circolando e Teatro Nacional São João
COPRODUÇÃO Nome Próprio, Centro Cultural Vila Flor, Teatro Municipal do Porto – Rivoli.Campo Alegre e São Luiz Teatro Municipal /
A Nome Próprio tem o apoio da República Portuguesa – Ministério da Cultura / Direção-Geral das Artes e é uma estrutura residente no Teatro Campo Alegre, no âmbito do programa Teatro em Campo Aberto
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