A propósito destes Dramatículos de Samuel Beckett, que Renata Portas e a sua equipa em boa hora trouxeram de volta ao palco no Rivoli, ocorre-nos um lado pouco explorado da obra do colosso irlandês e um artista plástico americano deveras sui generis. Ad Reinhardt, pintor abstracto e cartoonista, usava esta segunda actividade para comentar a Arte e a sua percepção. Um dos seus desenhos mais famosos mostra um quadro abstracto e alguém que o observa e pergunta “O que é que isto representa?” ao que o quadro responde, na vinheta seguinte, com o dedo bem levantado “E tu o que é que representas?”
É sabido que Samuel Beckett privilegiava a companhia dos artistas visuais, pintores e outros em deterimento dos seus pares (escritores, dramaturgos, séquitos em geral…) o que não era de todo casual. O detalhe e rigor das suas didascálias, assim como a importância dos elementos plásticos da sua encenação, como a luz e os movimentos, são traços identificadores de tal modo fulcrais, que as suas peças derradeiras abandonam a palavra, destacando a primazia da presença dos actores e da sua corporalidade.
Os diários que nos deixou, em particular os escritos em Berlim, onde tentou por várias vezes a carreira de curador, no período imediatamente anterior à I Guerra Mundial, comprovam esta procura de referências, e os comentários a trabalhos clássicos como os de Munch, demonstram a inspiração que deles retirava, quer na mise-en-scène e composição, quer na expressividade das personagens ou mesmo nos tons e na luz utilizada para destacar aspectos determinados da sua dramaturgia.
Junto dos pares, estudiosos e críticos, questões de sentido e interpretação de intenções, contextualização das personagens ou de escolhas de palavras eram tabu, pelo que o mito de a sua escrita ser obscura se manteve (apesar de nunca se escusar a corrigir e auxiliar os actores para deles retirar o máximo). A explicação dele era simples e compreensível. Dizia ser “the worm at the core of the apple”, pelo que tudo o que era externo à peça estava excluído da sua especulação pública.
A extrema protecção e preocupação que tinha com as representações do seu trabalho por todo o Mundo permitiam-lhe perscrutar sentidos ocultos nas suas peças, revelados com as interpretações, nuances de ritmos e vocalizações, olhares e expressões e mesmo o uso de outros media como a televisão, deixa que Renata Portas aproveita nos Dramatículos.
Dramatículos aborda cinco peças muito curtas de Beckett: Ohio Impromptu (Improviso de Ohio), Rockaby (Embalo), Play (Jogo), Not I e Footfalls (Passos). A temática comum é “a condição humana e a ideia de ruína” como nos diz a encenadora. Os grandes temas, comuns com variações, são Tempo, Linguagem, Morte/Memória, o que talvez explique a relevância particular de Beckett na actualidade, por motivos óbvios. A excelente tradução de Jorge Palinhos é um excelente ponto de partida para qualquer peça.
Diante de Beckett não convém atrapalhar o que está (per)feito. A não ser para o elevar, o que aconteceu a espaços com esta encenação cuidada de Renata Portas. Por exemplo em Not I, o momento alto do espectáculo.
Neste dramatículo, no original uma dificílima prova de esforço em que a actriz fica imóvel, colada a um painel numa plataforma para a elevar e em que apenas a sua boca é visível (para perceberem melhor do que se trata cliquem AQUI e AQUI), Renata Portas opta por uma voz gravada e, com a ajuda preciosa de Diogo M. Ferreira e Edgar Pêra, Diogo Borges e João Churro, desdobra o texto em várias bocas dispersas alternadamente numa tela, com som e stress visual adicional, emulando de forma eficaz a alucinação de falar e ver/ouvir falar uma neurótica à velocidade do pensamento.
Play (Jogo) é uma “ménage-à-trois” verborreica e lúgubre, em que um homem e as duas mulheres da sua vida surgem enfiados numa urna vertical, apenas com a cabeça visível, e discutem de forma cómica e frenética o drama trágico que conduziu à sua morte. Algumas falhas na iluminação e mesmo nas falas não comprometeram o ritmo diabólico da cena e o resultado final foi muito satisfatório. Em contraponto com estas duas corridas de 100 metros dramáticas, surgem três exercícios de rigor e contenção – a celebrada Improviso de Ohio e dois dramatículos em que o próprio Beckett reconhecia uma continuidade, opondo-se à sua apresentação simultânea – Embalo e Passos.
Improviso de Ohio é um comentário sobre a morte (as personagens trajam como coveiros de outro tempo), mas também sobre a masculinidade e os seus desafios e limitações. O toque que as personagens trocam nas mãos, surge quase como subversivo, neste exercício de poder, mas também de carinho e tolerância. Em cena, um Leitor e um Ouvinte (Pedro Manana e Pedro Damião perfeitos), “Tão parecidos quanto possível” como diz a didascália. Ouve-se a voz do Leitor, interrompida pelas pancadas do Ouvinte na mesa, quebrando o discurso como censura para trechos mais dolorosos e/ou demonstração de controlo. “Com a triste história contada pela última vez, eles sentaram-se quietos como se tivessem sido transformados em pedra.” O texto é sobre o duo e o momento exacto em que se encontram. Camadas de significado sobrepostas, a imediatez das palavras escritas no passado recuperada pela voz no presente sobre a ausência de futuro. “Alone Together”, como diz o standard de jazz. Uma maravilha de concisão, silêncios carregados e palavras únicas, interpretadas de forma irrepreensível. “Com a triste história contada pela última vez, eles sentaram-se quietos como se tivessem sido transformados em pedra.(…) Nada mais há para contar.” O epílogo, que não faz parte do original, surge estranho, quando os actores, em câmara lenta, retiram a mesa e as cadeiras de cena, em vez do fade out do original. Prolonga artificialmente o momento que já havia terminado.
Embalo e Passos foram momentos-chave do espectáculo pela prova de resistência que representaram para a assistência, com algumas desistências, saídas intempestivas e outras resistências, usando o telemóvel como instrumento de protesto e diversão. Passos é feita de numerosas pausas, silêncios incómodos em que Amy se limita a andar e a ruminar pensamentos e obssessões.
“(Pausa, A volta a andar de um lado para o outro. Quatro vezes. Depois da primeira vez,conta os passos.)
A: Um dois três quatro cinco seis sete oito nove roda um dois três quatro cinco seis sete
oito nove roda.” Amy, cuidadora da mãe acamada, parece conversar com ela (ausente da cena), para no final assumir Amy ambas as personas, como se fosse uma alma penada que recusa parar, “parar de revolver tudo? (Pausa.) Tudo? (Pausa.) Tudo isso. (Pausa.) No teu pobre espírito.”
Embalo substitui os passos da mulher de cabelo desgrenhado pela quietude de uma mulher similar que, sentada numa cadeira de baloiço, com a luz a iluminar apenas o seu rosto entre balanços, pede a uma voz gravada (como diz a didascália) que lhe fale do dia do fim, enquanto desfalece, e a cadeira “embala-a para longe.”
Quando confrontados com o silêncio, a morosidade dos movimentos e a ausência de luz e grandes flashes, resistimos e encontramos o conforto das palavras e dos actos e omissões certos para as acompanhar, precisos e consequentes.
Aqui somos confrontados com as limitações que o formato teatral encerra (a distância do público em relação à cena e aos actores, a impossibilidade de escolher planos ou observar expressões ou modulações de voz com detalhe – como na tv p. ex.), a que Renata Portas tenta obviar, com sucesso, como já referimos, em Not I (coincidência ou não, uma das poucas peças que Beckett gostou mais na versão televisiva do que no palco) e rendendo-se à inevitabilidade nas restantes peças.
Pode parecer um exercício relativamente infrutífero não só representar e encenar, como também tentar analisar uma obra que se basta pelo simples facto de existir, ainda mais potenciada por um espectáculo que a respeita sem reverência, revendo-a estrategicamente, como é exemplo a estranha coreografia de seres andróginos e robóticos a meio do espectáculo.
Mas é do confronto e contacto com a originalidade a que o universo do irlandês nos submete, inclemente, que nasce a inspiração para outros voos, a esperança e confiança no absurdo que é experimentar criar e executar ideias próprias e olhar o Mundo de forma inteligente, aberta e empática. Reconhecer a nossa finitude diante do Silêncio, a inutilidade da revolta e do lamento. Sobra uma percepção clara de que apenas nos resta rir desta comédia a que convencionamos chamar Vida.
“Entre a tragédia de existir e o abismo de desaparecer, Beckett escolhe doar-nos, malgré tout, figuras humanas, vozes e rarefação.
Face à morte, falar.
Pode o teatro ser ainda esta ágora a meio caminho do verbo criador e da morte?
Cremos que sim, eis-nos aqui.”, diz-nos Renata Portas AQUI
O obscurantismo da obra becketiana é pura falácia desinformada. O espectáculo de Renata Portas é mais uma prova dessa evidência, assim como o comportamento do público (lamentável, porém previsível) presente no Grande Auditório do Rivoli. O texto dito de forma pausada e contida, e os movimentos lentos, assim como a encenação que teve a escuridão como aliada privilegiada com respeito pelo original, são de tal forma contrários à nossa realidade de urgência e destempo, de reacção e incapacidade de lidar com a frustração, que potenciaram as saídas intempestivas a meio de cenas, e os telemóveis ligados numa busca infrutífera de luz e consolação. Compreensível? Talvez…
Três dos cinco dramatículos apresentados – Embalo, Improviso de Ohio e Passos – falam de espectros ou de seres humanos na antecâmara da morte (ou ambos?), tentando agarrar-se ao que resta – as palavras – ou a quem resta – familiares, amigos íntimos, cuidadores – para facilitar a viagem. Os outros dois não lhes ficam longe. Jogo é uma sobreposição de monólogos entrecortado com diálogos entre três personagens de um triângulo amoroso que correu mal (estão os três numa espécie de urna vertical) e Not I uma boca que debita sem cessar um discurso desesperado sobre o que a apoquenta e destrói.
Diferentes abordagens ao que resta de humano no limite das forças físicas e mentais, colocando o público no centro desse questionamento ao focar a sua atenção em pontos exactos, com a luz precisa e o volume das vozes controlado. Os factos são claros, transparentes, as palavras idem, o final antecipado pelo decurso natural das coisas. As expectativas são congeladas, a percepção de tempo e espaço baralhadas, restando-nos a imersão e a paciência. A entrega. Tal como a de todos os personagens, reais (nós) e fictícias, ao seu destino.
Ad Reinhardt no final da vida, decidiu utilizar apenas o preto na sua pintura, criando telas que convocam o espectador a observar com atenção, recompensando o seu interesse. Num desses quadros, o que inicialmente parece uma banal tela coberta de tinta preta, acaba por revelar um padrão oculto, de uma cruz no centro do quadro prolongada aos quatro lados, com novos tons. É arte que não pode ser apreendida de passagem. Exige atenção para se cumprir. O quadro é elevado a evento com o público certo. Também em Beckett, a persistência e dedicação compensam. Na parte derradeira da sua existência também ele depura a sua arte do peso da Língua, confiando na inteligência e sensibilidade do público para integrarem a mensagem.
Ambos optam pela negação do imediato, por nos mostrar o “negativo” da realidade. Estimulam uma dinâmica de reciprocidade com o público, tornado integrante do evento com as suas personas.
Beckett testa-nos e força uma posição (o clássico “ou se ama ou se odeia, mas ninguém fica indiferente” era repetido no vox populi pós-espectáculo, em posições extremadas), sobre quem somos e o que representamos, inesperadamente, por muito que nos custe. Renata Portas consegue-o também, com todo o mérito.
Que melhor papel se pode atribuir à Arte?
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Ficha Técnica
Encenação Renata Portas
Dramaturgista Hugo Miguel Santos
Tradução Jorge Palinhos
Interpretação Pedro Manana, Pedro Damião, Cláudia Lazaro, Sílvia Santos
Cenografia Sérgio Leitão
Figurinos Jordann Santos
Costureira Clementina Delgado
Desenho de luz Diogo Mendes
Operação de luz Cárin Geada
Música original e sonoplastia ST. JAMES PARK
Voz gravada (Footfalls) Renata Portas
Voz gravada (Rockaby) Claudia Lazaro
Voz gravada (Not I) Sílvia Santos
Documentação Diogo M. Ferreira/ Público Reservado
Maquilhagem Ruby Kruss
Fotografia Alípio Padilha
Comunicação Lina & Nando
Produção Mafalda Garcia / Público Reservado
Not I (filme)
Realização Diogo M. Ferreira
Edição e montagem Diogo M. Ferreira/ Edgar Pêra
Sonoplastia e misturas BIOT (Diogo Borges, João Churro)
Filme O
Realização, edição e montagem Diogo M. Ferreira
Sonoplastia e misturas BIOT (Diogo Borges, João Churro)
Mentoria e supervisão Edgar Pêra
Apoios e agradecimentos Arca Pub, Palacete Pinto Leite (residência artística), CRL – Central Eléctrica, Cais Novo, Escola Secundária Inês de Castro
A Público Reservado é uma estrutura financiada por República Portuguesa – Cultura / DgArtes
Autoria da capa © Lina & Nando
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