home Didascálias, TEATRO É Difícil Para Mim Dançar! – CAL (10 a 15/9/2019)

É Difícil Para Mim Dançar! – CAL (10 a 15/9/2019)

Nove atrizes e um ator correm esforçadamente, em círculo vicioso. Tentam salvar o Ginjal, velha propriedade rural da última peça de Tchekhov, que Mário Coelho brilhantemente reescreveu. Estamos em É Difícil Para Mim Dançar!, espetáculo que estreou no teatro da Politécnica, em dezembro de 2018. Com a sala sempre esgotada, a peça é agora reposta no CAL – Primeiros Sintomas (Rua de Santa Engrácia, 12A, Lisboa), entre 10 e 15 de setembro.
As personagens correm com o suor dos corpos a denunciar a exaustão. Uma delas vai ditando as regras do desafio. Além daquela família que corre, há mais quatro em competição. Têm de correr, quase sem pausas, até que só sobre uma, a quem será entregue o velho Ginjal. A corrida pode demorar dias, semanas ou meses.
Mas estas personagens movem-se por uma pulsão especial. Aquele Ginjal foi o lugar da sua infância. A cena começa no quarto das crianças, onde se vai lembrando a inocência de outro tempo e onde se dança, maravilhosamente, lembrando o que os liga àquele lugar. Lugar da continuidade familiar. Hoje, a velha família está tão endividada que já não consegue manter a propriedade. Resta-lhes, então, aceitar o desafio: correr o mais que possam, porque parece ser essa a única forma de salvar o Ginjal e, assim, de se salvarem a si mesmos. Será?
Durante todo o espetáculo, as personagens lembram a propriedade enquanto lugar de ternura e pertença, infância e memória. Mas esta rememoração desoculta também os esqueletos nos armários. As relações mórbidas com aquele lugar que os criou. Joga-se um jogo: “Quem é a pessoa mais triste da casa?”; e vai-se desvendando que aquele romantismo está também cheio de sujidade. Há tensões em todos os poros daqueles corpos. Mergulhando nelas, até à exaustão, há pergunta que vai persistindo, latente: será possível salvar algo que já não nos pertence? Ou melhor: Podemos mesmo salvar aquilo que já não somos ou que nunca teremos realmente sido?
Porque correm aquelas personagens? A corrida não é apenas uma obsessão dramatúrgica consciente dos espetáculos de Mário Coelho, que sempre gosta de nos confrontar com a crueza dos corpos, dos suores, do esforço-limite e da exaustão. É também porque aquela corrida é o teste fulcral. A força e a exaustão da corrida deve ser proporcional ao nível de entrega e apego à propriedade e ao seu sentido. A força de quem com ela quer ficar depende da sua dedicação, determinação, entrega, fidelidade, lealdade e sacrifício.A decadência da aristocracia, que começava a não conseguir competir com uma burguesia emergente, dá substância ao que ali se disputa: a ideia de que a propriedade se deve manter não pela força do dinheiro, mas pela força dos vínculos que ela carrega e que unem aquelas pessoas àquele espaço. Mas será que unem mesmo?
À medida que correm e que dançam, vai-se tornando evidente que a corrida que os une, é a mesma que os separa. A corrida distancia o que as representações da infância parecem querer unir.
Por um lado, ali se encontram as tentativas fúteis de uma velha aristocracia em manter uma ideia de si própria – um status- associada à propriedade, às memórias e à sua continuidade, com uma nova burguesia emergente, comerciante e mercantil – sempre preocupada com o tempo, sempre a olhar para o relógio… – à procura de encontrar um significado para o seu novo materialismo.

Mas por outro lado, a corrida quer unir o que a figura Firs sempre separa. O velho servo da família de 87 anos que ora entra e ora sai. Homem-morcego que cuida, mas não dorme. Ora está presente como ternura, ora oculto porque esquecido. Ora corre com a família, ora se torna invisível, como mais uma das paredes da propriedade, destinado a morrer com ela. Relação ambígua entre servos e senhores, tal qual os criados de Downton Abbey – ora há ternura, ora há servidão. A ilusão de que os criados fazem parte da família – e da corrida – acaba com a melhor das ironias: o velho criado esquecido, a velha proprietária transformada em fantasma.
De que é nome, então, aquela dura corrida? De uma divertida comédia sobre as novas configurações da mudança social? De uma tragédia de três classes – uma aristocracia que já não é, uma burguesia que ainda não é, e uma servidão que nunca será? Ou tratar-se-á de uma farsa, ironia ácida sobre a disputa de uma ausência, isto é, de um passado que é bem diferente da sua rememoração, de um presente que já não é o que podia ser e de futuro que nunca chegará? O espetáculo navega nestas tensões, oscilando entre o sentido quotidiano das vivências e uma certa fantasmagoria que nos remete para essa ausência.
Porque correm, então, aquelas pessoas? Porque continuam a dançar? Porque a corrida e a dança é o que resta de si e do que são umas às outras. O que as liga está naquela fronteira entre a memória enquanto infância perdida e o presente feito fantasmagoria de um passado idealizado que já não volta e de um futuro que provavelmente não virá. Que se corra então, enquanto há tempo. E como elas correm…
São elas e ele Anabela Ribeiro, Ana Valente, Ana Valentim, Anna Leppänen, Cleo Tavares, Mariana Fonseca, Mariana Gomes, Mariana Guarda, Pedro Baptista, Rita Rocha Silva e Rita Silvestre. Com luz de Manuel Abrantes, apoio à criação de Filipe Baptista, apoio ao movimento de Ana Moreno e Filipe Baptista, fotografia de Alípio Padilha e vídeo de João Soares Santana. Dramaturgia e encenação do muito promissor Mário Coelho.

Texto de João Mineiro

Por defeito profissional, o João Mineiro escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

Foto © Alípio Padilha

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