home INTRO(specção) E tu, onde estás?

E tu, onde estás?

Por um acaso do destino, assisti na mesma semana e em dias seguidos, a “Na via láctea”, de Emir Kusturica, ainda em exibição no recém-aberto Cinema Trindade, e aos dois espetáculos do Foco Deslocações, no Teatro Municipal do Porto (Campo Alegre), respetivamente por Dorothée Munyaneza, do Ruanda, e Mithkal Alzghair, da Síria. Em comum? A guerra e a paz. A guerra no ecrã e no palco, dos Balcãs, à África, ao Médio Oriente; a paz aqui e agora, no bilhete de identidade do público, os descendentes do fim da História: os anos 90, a felicidade eterna, o triunfo do bem e dos bons. Isto explica a dificuldade que temos em conseguir imaginar com uma mesma palavra – guerra – experiências tão díspares como as aventuras odisseicas e as desventuras romanas perante os bárbaros do Norte, qualquer batalha lusitana contra muçulmanos ou castelhanos, Napoleão em Waterloo, Hitler no bunker, o tio Manel em Luanda. A mente é preguiçosa, “guerra” é igual a passado. Toda a guerra que tenha lugar no nosso tempo histórico é anacrónica, menor em amplitude e gravidade, um vestígio de um passado que há de naturalmente perecer perante a evidência de que o bem triunfa e triunfará. Se não por anacronia, então por geografia. Está confinada aos subdesenvolvidos, aos azarados da espécie de quem sabemos apenas que sofrem de mês a mês, porque o jornal televisivo acompanha esse ritmo. Daí ser imperativo o desconforto, o banho de realidade das três obras a que assisti.

Kusturica é mal-entendido. O realismo mágico “à la jugoslava” ofusca as minas espalhadas nos Balcãs que são granadas intactas a longo prazo na memória daquelas gentes. Não há como ter memória sem pensar nas minas, como nos mostra a cena final, do velho pícaro leiteiro (o próprio Kusturica), que um dia se apaixonou por uma italiana em fuga pela Bósnia durante a guerra (Monica Bellucci), e cuja vida tem sentido pelas pedras que há de colocar, até que lhe acabe a vida, no campo onde outrora a acabou por perder para a fúria genocida, construindo-lhe o túmulo a que ela não teve direito. Sabemos que o leiteiro e a italiana foram os últimos da aldeia a conseguir escapar aos soldados vestidos de negro que surgiram quando os franceses, ingleses e americanos se tinham ido embora, anunciando que tudo estava bem quando acaba bem. Durante a perseguição, o par romântico em fuga esconde-se no meio de um rebanho, mas quando as ovelhas em bando se começam a mexer para uma zona de minas e a explodir em catadupa, sabemos que ali estão os Balcãs: um espetáculo de carne, sangue e tripas. Até chegar aqui, o enredo são os dramas comuns de uma aldeia como qualquer outra, com uma diferença: os tiros, as bombas, os helicópteros, o ruído ensurdecedor. A guerra ali e agora, e a vida continua, debaixo do som do relógio austro-húngaro que ainda toca na casa onde a italiana há de conhecer o leiteiro, disputado pela jovem Milena, que só quer que a guerra acabe para que o irmão volte e case com a italiana, e haja final feliz para todos.

Ao longo do filme, a minha memória e eu: e tu, onde estavas em 1994?

Um dia depois, e Dorothée Munyanez do Ruanda, faz-nos a mesma pergunta no Campo Alegre, no fim do brilhante espetáculo de música, teatro e dança “Samedi Détente”: e vocês, onde estavam em 1994? Na hora e meia anterior, ficamos a saber onde ela estava. Doze anos de idade, em fuga, por entre carne, sangue e tripas, com a família e os conhecidos, que iam desaparecendo ao longo do caminho enquanto o complexo puzzle político do Ruanda se mostrava na sua pior face – duas etnias historicamente colocadas em confronto pela potência colonial belga: a maioria, hutu, utiliza o atentado ao presidente Juvénal Habyarimana como desculpa para orquestrar o genocídio da minoria tutsi. Violações, massacres, 800 000 mortos num mês, recorde histórico, descida brutal da demografia ruandesa. Do lado de cá, tudo bem: “os genocídios são uma coisa diferente nesses países”, ainda foi a tempo de dizer François Mitterrand antes de morrer. Dorothée narra a sua história, traz-nos a música do país onde ela não vive desde então, da fuga à dança como escape, ao rádio que traz as notícias do futuro incontornável. Tudo sem sensacionalismo, mas sem subtileza. A crítica política e a pergunta desafiadora no final lembram-nos: há mais mundo que o vosso, aqui e agora.

Como no dia seguinte. Síria, a subtileza da inexistência de palavras, o murro no estômago com um par de botas e uns passos de dança: a parafernália militar e o folclore do que foi um país agora em desmantelamento. Dançar para não perder a identidade roubada, para não esquecer a violência, a ter lugar agora mesmo. O coreógrafo, Mithkal Alzghair, compõe um espetáculo impressionante, doloroso, difícil, sem ruídos, sem sangue, nem tripas, apenas mostrando a indignidade de quem vive com as mãos ao alto e com a expressão fixa de felino, porque a vida ali não é para humanos. É de salientar o trabalho corporal fascinante, assim como a gestão do mais difícil: os silêncios. Porque o ruído da espuma dos dias é o espírito do nosso tempo.

E tu, onde estás?

– Luis Pimenta Lopes

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