home Antologia, LITERATURA El-Rei Junot – Raúl Brandão (Guerra e Paz, 2017)

El-Rei Junot – Raúl Brandão (Guerra e Paz, 2017)

A Guerra e Paz lançou recentemente uma nova edição de El-Rei Junot, de Raúl Brandão (1867-1930), como parte da sua coleção de clássicos da literatura portuguesa. Publicado em 1912, no mesmo ano em que o autor se reforma da carreira militar, desengane-se quem, sugerido pelo título, espere deste El-Rei Junot um registo biográfico do general do exército francês que liderou a primeira das invasões francesas a Portugal durante as Guerras Peninsulares (1807-1814). Encontramo-nos aqui perante um documentado trabalho de narração de todo um período conturbado e proeminente da História portuguesa e europeia, que começa com os tumultos franceses do final do século XVIII: “Oito de Agosto de 1788 – Estados Gerais. Uma simples data e o mundo é outro.” A Revolução Francesa é História, assim como os objetivos megalómanos de Napoleão, e a incompetência e destino malfadado das elites regentes na Península Ibérica. Perante a “tempestade que se desencadeou no globo”, Brandão abre-nos o relato com a arquitetura complexa da gestão do país ao chegar a 1800: o Marquês de Pombal, “última figura do passado”; D. José, “El-rei banal”; D. Maria, sua filha, impossibilitada de reinar por doença mental; seu filho, o príncipe regente D. João VI, “bronco e espesso (…), barrigudo e triste”, em cujas mãos cai a responsabilidade de reagir à imposição de um bloqueio continental à Inglaterra por parte da França napoleónica, assinando humilhantemente o Tratado de Badajoz em 1801. Perante este catálogo de personagens inaptas, a abertura da obra coloca o ónus onde ele tem de estar: “A história é dor, a verdadeira história é a dos gritos.” Assim abre El-rei Junot, assim se encerra, e ao longo dos vários capítulos que dissecam vários aspetos da invasão e da guerra napoleónicas, concluímos que foram o sangue e o suor do povo, ao contrário do comodismo e corrupção das elites, que impediram Junot de se tornar efetivamente El-Rei em Portugal.

A forma é ambígua, como admitem os editores na nota inicial: não é um romance convencional, não é ensaio historiográfico. Destaca-se o lado testemunhal, através da inclusão de fontes da época, como editais, proclamações, tratados, convenções, jornais ou diários pessoais. A documentação extensiva, aliada à narrativa-comentário aos eventos que, embora imitando um registo historiográfico, se apoia predominantemente numa linguagem de tom lírico, resulta num equilíbrio que faz de El-Rei Junot um poderoso manual do zeitgeist europeu da altura.

Após o excurso introdutório pela onda de revoluções do fim de século, a marcha para cá dos Pirenéus, ordenada pela intransigência de Napoleão: “Os homens para ele não passam de algarismos (…) A dor alheia é zero.” Esta horda comandada por Junot, “um louco”, e que pilharia e destruiria tudo por onde passasse, assemelha-se a outras corjas sanguinárias que devastariam a Europa, mas na direção contrária e sob ordem de outro louco, já em meados do século XX: “Em 1807 já tudo serve a Bonaparte – ladrões, aventureiros, canalha de toda a espécie e homens sem instrução militar (…) Às vezes um frenesi apodera-se da corja, que destrói tudo com urros de prazer.” Violações, saques, abandono de feridos em agonia, este “inferno que avança sobre o país” é um espetáculo que a voz narrativa descreve em formato quase cinematográfico, alternando-o com informações de cariz político e militar: descrevem-se as condições em que se assinou o tratado de Fontainebleau, entre a França e Espanha (1807), prevendo a repartição de Portugal entre as casas reais daqueles países, após a invasão planeada por desrespeito do disposto no Tratado de Badajoz; seguimos o caminho efetuado pelas tropas, que vias utilizaram, quando chegaram e como foram sendo recebidas nas diversas cidades portuguesas até à chegada a Lisboa; qual o material de artilharia utilizado, em que estado os franceses chegaram às portas da capital: “O armamento está deteriorado, os cartuchos molhados: três mil homens defenderiam ainda com êxito a passagem do Zêzere. Mas não há perigo… De Abrantes para baixo, o Tejo corre com majestade e beleza na planície fértil. Respiram.” E respira o texto, movendo a ação para Queluz e Lisboa, nos dois capítulos dedicados à corte e à fuga.

Está lá tudo: a frivolidade da família real, o provincianismo do programa cultural lisboeta, as hemorroidas de D. João VI, o pelo negro dos braços de Carlota Joaquina que enojavam Laura Junot desde o tempo em que o marido era embaixador da França em Lisboa, o saque e o esvaziamento da capital antes da fuga para o Rio de Janeiro, o povo espantado com a doida Carlota Joaquina, encerrada em casa desde há 16 anos, resistindo em entrar na embarcação. Brandão gere o plano interior das personagens reais com a perspicácia de um narrador omnisciente de ficção: “Talvez suponha que a levam para o cadafalso, para a expiação dos crimes do pai, das torturas das Távoras”.

Antes de um retrato dos franceses em Lisboa e do papel espanhol na invasão, uma divagação narrativa da cidade “fedorenta e devota”: a influência do clero, “promotor da ignorância”, existente em números exorbitantes; o despesismo da casa real, da nobreza e da administração pública (“… ninguém sabe o que se gasta, o que se cobra, o que se delapida”); as ruas perigosas, as quadrilhas que aterrorizam a população à noite;os bandos de crianças à solta, vendidas, como mercadoria, a espanhóis; os artistas deslocados que se sentem “subalternos” (Bocage, Tolentino, Sequeira); os teatros fechados (“…degredados os cómicos e presos os rapazes por crime de sodomia”); os velhos ricos obcecados pela moda francesa; o fedor de noite (“…a lama, tão antiga como a história […] é a lama da Índia, das conquistas, do terramoto e da desgraça”); o governo que suspeita da expedição do alemão Alexander von Humboldt às colónias na América do Sul; a visita de Mary Wollstonecraft, “mãe do feminismo”, a Lisboa; as péssimas traduções do Francês de contos e novelas; as superstições do povo e das elites perante o terramoto e a passagem de um cometa em 1807. Um Portugal pouco iluminista, bem fundamentado com recurso a jornais da época, aos versos que circulavam pela boca das massas (“Quem oprime os portugueses/Quem os rouba sem ter dó? / É esta tropa francesa/ De quem é chefe o Junot”), e a diários, que Brandão transcreveu muito a propósito, como o de Laura Junot, incontornável para se perceber a visão externa do país: “Camões é desconhecido na sua própria pátria”. Torna-se claro, depois deste quadro de horrores, que “[í]amos asfixiar quando a tempestade napoleónica derrubou tudo.” Implica isto uma potencial interpretação positiva da invasão? Nada disso, sobretudo porque da iluminista Europa não chegam alternativas exemplares: a França sem ideais preconizada pela loucura de Napoleão; a “trágica Espanha”, igualmente dotada de uma corte incapaz, cujo drama é equiparado a uma tragédia burguesa (“marido ultrajado, mulher, filho, amante”), e as figuras protagonistas– Carlos IV, Manuel Godoy, a amante Pepa Tudo, os homens banais de capa esfarrapada que só dizem pues – descritas enquanto personagens de uma peça dramática, em tom trágico-cómico: “Lá como cá, a ideia é a mesma: fugir, fugir depressa com o dinheiro e as amantes, a corte, a Pepa Tudo (…) para onde Napoleão não chegue”; a Inglaterra, “essa odiosa máquina (…) cheia de nevoeiro, de tubos, de chaminés vomitando fumo”.

A imagética dos ventos políticos que correm pela Europa de início de século XIX excede em interesse o capítulo mais curto da obra, que se dedica ao próprio Junot que lhe dá título. Interessa menos quem é este homem do que como as elites lisboetas que não faziam parte dos quinze mil embarcados para o Brasil, rapidamente com ele colaboraram, de forma a acomodar “oiro e ganância”, de que dependiam já antes da chegada dos franceses. É aqui que Brandão parece justificar as palavras que iniciam a obra, voltando à populaça, religiosa, antissemita, odiosa dos jacobinos, que, em última instância, instigada pelos frades, com a sua luta corpo a corpo e com as formas que possuía, ligadas à terra e à alma, possibilitou a retirada dos franceses, pese embora as cláusulas da Convenção de Sintra. Esta, determinada por portugueses e ingleses, permitiu aos invasores deixar o país levando tudo o que quisessem, desde que a Inglaterra não fosse atacada: “Não tarda também que peçam um empréstimo, armas, pólvora à Inglaterra – e até um general”, com a narrativa interrompida a prosseguir no imaginário do leitor que antecipa as linhas de Wellington e a dependência portuguesa do aliado britânico. A cólera e violência populares, que levam ao assassinato de jacobinos, alguns deles defensores da causa portuguesa, deixam, no fecho da obra, e, tendo em conta o tempo histórico da publicação – 1912, uma guerra à porta da Europa, novas e originais violências a caminho – um travo amargo, impossível de ignorar: “Matem! Matem esses judeus!”

A edição da Guerra e Paz mantém o longo conjunto de notas escritas pelo autor na edição original, várias imagens que ilustram figuras e eventos narrados, e, em anexo, extratextos suprimidos de alguns dos capítulos da obra. No final, uma breve cronologia da primeira invasão e um sucinto catálogo biográfico das personalidades-chave da época, ajudam o leitor menos especialista a desfrutar da elevada quantidade de informação e personagens que polvilham a narrativa. Seria supérfluo explicar a pertinência da reedição de um livro raro de investigação histórica em forma de literatura, como é o caso de El-rei Junot.

A Guerra e Paz está de parabéns.

Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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