Rainer Maria Rilke é um exemplo raro na literatura moderna de um poeta que nunca desejou escapar às duras exigências da sua natureza humana ou da sua arte, alguém cuja obra amadureceu em pleno conjunto com a sua vida. Todos os leitores têm presente nas suas mentes diferentes imagens de poetas, cada um com distintas mitologias baseadas em fragmentos das suas vidas, trabalhos e reputações. Existem por exemplo, as imagens de poetas complexos e intrincados como T.S. Eliot ou Fernando Pessoa, ou então imagens de poetas mais públicos e excessivos como Ezra Pound. Mas entre todos os poetas da lírica moderna, não parece haver hoje um poeta que transmita uma imagem tão fora do comum como Rilke, um poeta dedicado às representações de anjos, de crianças e de criaturas mitológicas, figuras descritas com uma espiritualidade sentimental extasiada,contraposta pela lembrança continua da iminência da morte. As suas duas obras poéticas mais célebres, Apologias de Duíno e Os Sonetos a Orfeu, são duas obras maiores da poesia moderna, em que Rilke combina a profundidade espiritual com a perfeição poética, e a promove a fusão do ser com o canto.
Esta nova edição da tradução de Vasco Graça Moura constitui a primeira edição em Português que combina a versão integral das Elegias de Duíno com os Sonetos a Orfeu. Traduzir poesia lírica é em geral uma arte dos extremos, e a tradução das Elegias a Duíno e dos Sonetos a Orfeu é um desafio particularmente único, já que esta coleção de poemas representa nada mais de que uma reinvenção da lírica alemã. Nesta esplendidíssima versão que combina as duas obras maiores de Rilke e duas das mais importantes colecções da poesia moderna alemã, Vasco Graça Moura tem a capacidade notável de encontrar um substituto em português para as metáforas subliminares dos poemas originais e consegue oferecer ao leitor recriações válidas para a linguagem carregada de sentidos de Rilke. A imensa criatividade de Graça Moura, se bem que por vezes ousada, nunca deixa de respeitar o sentido essencial dos poemas originais de Rilke.
Rainer Maria Rilke nasceu em 1875 numa família de expressão alemã em Praga, Império Austro-Húngaro, e o seu primeiro nome era René, nome que ele mudou para Rainer quando conheceu a extravagante Lou Andreas-Salomé, antiga companheira Friederich Nietzsche. Desde os 8 anos que se considerava um poeta, e para além de coleções de poesia, publicou peças de teatro, narrativas, ensaios literários, e crítica de arte. Depois de frequentar sem entusiasmo escolas militares, e tentar seguir sem sucesso estudos universitários em Praga e Munique, cedo se iniciou no que seria a sua errática vida artística. Entre as suas obras iniciais mais notáveis encontram-se as Cartas a um Jovem Poeta (1903),O Livro das imagens (1906) e Novos Poemas (1908).
Depois de se tornar um poeta célebre na Europa culta do inicio do século XX, Rilke era uma presença comum em festas de círculos aristocráticos e artísticos, que patrocinavam o jovem e diletante poeta para passar longos períodos em vilas, palácios e castelos por entre Itália, Suécia, Alemanha, Áustria e França. Rilke era um homem de grande sensibilidade, e teve ao longo da sua vida, romances com várias mulheres artistas e intelectuais, romances intensos e literários dominados pela palavra “alma”. Ao longo da sua evolução poética, decidira sacrificar o seu desejo de encontrar uma companheira, o que lhe permitia libertar a sua enorme capacidade para o afecto na sua escrita. Inspirado pelo seu mentor, o escultor Auguste Rodin, de quem foi secretário, Rilke aprende a balancear a precisão estilística da sua lírica com uma representação da angústia e da fragilidade humana.
Após um período de crise criativa, escreve o poema Wendung em 1914 que se vai tornar decisivo para a maturação da sua poesia. Afetado pelo trauma do inicio da Primeira Guerra Mundial, este poema representa um atingir de uma maturidade plena, e demonstra Rilke como um poeta capaz de retratar a crise espiritual do homem moderno quantos os grandes sistemas de valores tradicionais estavam a colapsar. No período que se seguiu ao início da Guerra, Rilke estava constantemente deprimido e exausto criativamente, e sentia o recorrente desejo de adoptar um estilo de vida ascético, capaz de negar a sua existência diletante, e de levar ao amadurecimento pleno da sua obra.
A sua colecção de poemas seguinte – as Elegias a Duíno – começou como um memorial fúnebre dedicado à dançarina Wera Ouckama Knoop, e dela constam alguns dos poemas mais celebrados da sua carreira e da lírica moderna alemã. Rilke começou a escrever estas elegias em 1912, no castelo medieval de Duíno na costa do Adriático, onde era hóspede da Princesa Marie von Thurn und Taxis. No entanto, escritas as primeiras elegias, seguiu-se um longo período de bloqueio criativo que durou mais de 8 anos. Em fevereiro de 1922, Rilke mudou-se para o Castelo de Muzot na Suíça, um castelo do século XIII em que não havia electricidade, nem aquecimento ou canalização. Estas condições de privação materiais tornaram-se a forma de terminar forçadamente o seu bloqueio criativo. Paul Valéry, o afamado poeta francês que conhecera Rilke como o dandy elegante das festas da aristocracia, reagiu com pânico quando conheceu as condições ascéticas em que o seu amigo poeta se hospedara. Porém, assim que chegou ao seu castelo, Rilke entrou num período de exaltação e de atividade criativa eufórica, em que mesmo comer ou dormir se tornaram desnecessários. Num curto período de cinco dias, Rilke escreveu dezenas de poemas, permanecendo sempre de pé, como à frente de um pódio, declamando com a sua voz poderosa todas as linhas dos poemas que acabava de escrever, que reverberavam nas paredes medievais do castelo para constante consternação do seu inquilino. Este período de ascetismo e de prodigiosa criação literária também se reflectiu no tom celebratório da obra poética que escreveu nessa altura.
Nas Elegias de Duíno, Rilke parece extasiado com a energia do seu próprio poder poético, sendo particularmente significativas as elegias que são afirmativas da vida, contendo passagens de celebração e de puro êxtase, que são descobertas emotivas da própria imagem poética:
“Terra, não é isto o que tu queres: invisível
Despontar em nós? Não é o teu sonho
Seres um dia invisível? – Terra! Invisível!
O que é, a não transformação, a tua missão imperiosa?
Terra, tu, ó amada, eu quero. Oh, crêem não precisavam
as tuas primaveras de ganhar-me para ti – uma,
ah, uma única e já demais para o sangue.
Sem nome me decidi por ti, de longe.
tinhas sempre razão e a sua santa inspiração
é a morte em confiança.Vê, eu vivo. De quê? Nem a infância nem o futuro,
se tornam menos… Excessiva existência
Me jorra ao coração.” (página 71).
Nestas elegias observa-se igualmente uma mudança dos temas e dos motivos escolhidos por Rilke, quando comparados com a sua poesia neo-romântica anterior. A sua tradicional escolha de temas melodramáticos como amantes traídos foi substituída pela representação privilegiada de figuras de anjos,testemunhas privilegiadas da fragilidade humana, e da dialética entre a salvação e a danação dos homens.
“Quem, se eu gritasse, me ouviria de entre as ordens
dos anjos? e mesmo que um deles de repente,
me cingisse ao coração: eu desfaleceria da sua
existência mais forte. Pois o belo não é mais
do que o começo do terrível, que ainda mal suportamos,
e deslumbra-nos assim porque, imperturbado,
desdenha aniquilar-nos. Todo o anjo é terrível.
E eu me retraio então e engulo o chamariz
do escuro soluçar…… Os anjos (diz-se) muitas vezes não saberiam
se andam entre os vivos ou os mortos. A eterna torrente
arrasta sempre em rodopio todos as idade por
ambos os reinos e em ambos se sobrepõe às suas vozes.No fim já não precisam de nós os arrebatados cedo,
desabituamo-nos suavemente do que é terrestre, como deixamos
placidamente o peito da mãe. Mas nós, que precisamos
de mistérios tão grandes, a quem do luto tantas vezes
brota um progresso venturoso: poderíamos sem eles? “(página 19).
Alguns críticos podem evidenciar as poucas referências ao mundo real nestas elegias mas, na verdade, a poesia de Rilke sempre almejou o figurativo e o transcendente. Nestas elegias em particular, há a prioridade do ornamento e do deslumbramento existencial sobre qualquer tipo de exposição de uma verdade ou de um sentido, o que constitui uma característica da mais elevada poesia. Como Paul de Man sugere o “ (grande) poeta oferece-nos a possibilidade de existir, e isso é suficiente”. No entanto, um leitor atento poderá notar que, ao longo das Elegias de Duíno, o transcendente não deixa de ser contraposto pelo mundano, e o júbilo não deixa de ser inevitavelmente cortado pela fragilidade da vida autêntica e ordinária. Em concreto, a referência de Rilke aos temas que considerava mais angustiantes para o homem, como a morte de crianças e o desespero emocional, estão presentes nestes elegias e aumentam a validade espiritual destes poemas, dando-lhe um sentido mais profundo.
Os Sonetos a Orfeu são o último grande trabalho poético de Rilke, escritos no mesmo período em que Elegias de Duíno durante a sua estadia no castelo de Muzot. Foram publicados em 1922, ano decisivo para a literatura moderna, em que The Waste Land de T.S Eliot e Ulysses de James Joyce também foram publicados. Estes poemas envolvem a reapropriação moderna de uma herança mitológica que resulta na construção de novas prácticas poéticas. Em particular, Rilke escolheu a figura mitológica de Orfeu como um símbolo mediador, alguém para quem o mundo dos vivos e dos mortos é acessivel, alguém que tem conhecimento sobre o amor, a poesia, a existência humana e a morte. Estes poemas tratam a descida de Orfeu do mundo terreno ao submundo em procura da sua amada Eurídice, e descrevem o conhecimento que Orfeu adquiriu no mundo dos mortos. Assim, Rilke descobre nesta narrativa mitológica que a aceitação da nossa mortalidade é a condição necessária para experienciar plenamente a existência. Nestes sonetos, Rilke glorifica igualmente o poder da expressão poética, e cada poema é, ao mesmo tempo, uma melodia, um grito e um apelo à transformação individual:
“E uma árvore irrompeu. Ó ascese pura!
Ó árvore no ouvido! Orfeu numa canção!
E tudo emudeceu, E o silêncio inaugura
novo começo, sinal, transformação.” (página 85).
Rilke apela a um êxtase pleno de todos os sentidos, normalmente presente numa perfeita comunhão com a natureza que produz a mais intensa expressão poética.
“Ousai dizer ao que chamais maçã.
Sob no paladar, suave, vai por si,
Doçura que primeiro se faz densa,E fica alerta, clara, transparente, sã,
Dúplice, solar, terreste e é daqui :
Ó experiência, alegria, sensação – imensa!” (página 109).
Apesar do seu tom celebratório, nos Sonetos a Orfeu demonstra-se igualmente a ambiguidade do papel do poeta moderno em que Rilke se revia. Parte do caráter moderno destes poemas é o reconhecimento de que poesia está limitada ao que as palavras tentam, mas não conseguem alcançar. A poesia de Rilke pode antecipar o que se chamará “poética do insuficiente”, o reconhecimento de que os poetas, desencantados com o mundo, com as limitações da natureza humana e com as limitações da própria arte, reconhecem que a sua tarefa é interminável e que a linguagem que empregam é insuficiente.
Da mesma forma, apesar de as canções permitirem Orfeu encontrar a sua amada Eurídice no submundo, Orfeu eventualmente perde Eurídice de forma definitiva, e o cantar de Orfeu reconhece essa a perda. Para Rilke, Orfeu não passou completamente para o mundo dos mortos, mas ao enfrentar e interrogar a sua mortalidade, isso ajudou-o a criar a sua canção:
“Um deus pode fazê-lo. Mas como há-de, no solo,
segui-lo hum homem, tosca lira empunhada?
Seu espírito é discorde. E numa encruzilhada
Do coração não há templos para Apolo.Nem é desejo o canto que lhe ensinas,
Nem busca do que possa inda atingir.
Para um deus será simples : cantar é existir.
Mas nós quando é que somos?…” (página 89).
O espaço órfico é o mundo a que todo o poeta tenta aceder, a inevitável origem da obra da arte, sendo que o trabalho poético resulta na consagração desse mundo. Tal como Martin Heidegger descreve em a Origem da Obra de Arte: “A obra de arte é na verdade, abrir um mundo, e a tarefa de um artista é consagrar um mundo, mas o seu trabalho não pertence ao mundo que ele consagra. O trabalho pertence à terra, e constitui algo como o horizonte absoluto do mundo, um limite que determina a historicidade e finitude do mundo”. Esta consagração é celebrada no décimo segundo soneto a Orfeu:
“Pura tensão. Música de energias!
Não é por afazeres em boas vias
que te é desviado o que destoa?Mesmo se o camponês cuida e labuta
onde o grão semeado se transmuta
Nunca ele lá chega. A terra doa.” (páginas 107).
As invocações de Rilke a um mundo transcendente e ao submundo, reconhecem que o descobrimento da imagem poética por Orfeu envolve a migração entre esses dois mundos. Os Sonetos a Orfeu são a apropriação de um mito e, tal como o seu predecessor mitológico Orfeu, Rilke também aprendeu que, apesar da capacidade de transgressão do cantar poético, a actividade poética nunca está completa. Para Rilke, Orfeu não passou permanentemente para o mundo dos mortos, mas ao reconhecer a sua mortalidade, enfrentou a sua própria realidade humana, e isso ajudou-o criar o seu canto poético que lhe prolonga a sua existência, ou pelo menos, a sua notoriedade.
Pouco depois de completar este magnifico ciclo de poemas, Rilke morreu de doença prolongada em 1926 na Suíça e, eventualmente, tornou-se dos poetas mais celebrados e influentes da língua alemã, reputação que ainda hoje se mantém. Apesar do seu recorrente misticismo, Rilke não tentou encontrar uma forma de salvação metafísica na sua poesia, nem tentou oferecer uma doutrina de salvação aos seus leitores. Nas formas condicionais da sua poesia, Rilke oferece-nos a possibilidade de celebrar poeticamente o ser humano, que é suficiente em si mesmo; um celebrar que, apesar de reconhecer todas as nossas limitações, procura encontrar uma forma de validade espiritual. Em tempos de ceptcismo, se bem que os leitores de Rilke possam ficar perplexos com as suas invocações de anjos e as suas expressões de ardor místico, poderão seguramente encontrar na sua poesia sublimes e válidas exortações à construção de um ser mais rico.
“Mude embora o mundo
como as nuvens depressa,
a perfeição regressa
a um antes profundo.Sobre ir mudar,
vasto e livre dura
teu ante-cantar,
deus da lira pura.Ignoradas dores,
Amar sem saber quanto,
Distâncias maioresQue a morte não quebra.
Sobre a terra o canto
santifica e celebra.” (página 121).
Por defeito profissional, Jorge Ferreirinha escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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