Understanding Endgame can only be understanding why it cannot be understood…
Theodor Adorno, “Towards an Understanding of Endgame”
And I said, with rapture, Here is something I can study all my life, and never understand.
Samuel Beckett, Molloy
Beckett tornou-se uma daquelas personagens universais que todos adoram citar ao mínimo pretexto. A mera menção do nome em conversa é sinónimo de sabedoria e cultura, qualquer que seja a frase que o evoca. Tal não ocorre por mero acaso. Samuel Barclay Beckett foi realmente único, por mérito próprio. Mergulhou a fundo nos clássicos e preparou-se metodicamente para a excelência que atingiu. No entanto, encarar as suas peças com o peso incapacitante da sua afamada impenetrabilidade é, para além de um erro crasso, um entrave à fruição integral da beleza e originalidade da sua obra.
A sua recusa liminar em dar explicações é lendária, privilegiando o protagonismo das palavras e dos actos mostrados em cena ou descritos no papel, abrindo o texto a múltiplas exegeses. Numa carta a Alan Schneider, encenador das suas peças nos EUA, foi extremamente explícito, perante repetidas solicitações para esclarecimentos.
“Sinto que o único caminho a seguir é a recusa de qualquer tipo de interpretação. E insistir na extrema simplicidade da situação e tema dramático. Se não for suficiente para eles, e obviamente não é, é-o para nós, e não temos esclarecimentos a fazer dos mistérios que são inteiramente da sua autoria. O meu trabalho é da ordem dos sons fundamentais (não é uma piada) o mais completos possível, e não aceito qualquer outra responsabilidade. Se as pessoas querem dores de cabeça com conotações, é deixá-los. E que tomem a sua aspirina.”
Esta reserva, que estendia do trabalho à intimidade, apenas adensou os mitos em torno da sua Arte. Como seria expectável, (quase) toda a crítica especializada e académica vasculhou o seu percurso biográfico em busca de alguma solução para o(s) puzzle(s) que deixou, algo limitativo, senão permeável à pura especulação, pelo que vos pouparemos a essa verborreia, facilmente acessível noutras fontes que não este vosso aprendiz.
Após o sucesso extraordinário de À Espera de Godot (escrita entre finais de 1948 e o início de 1949, só foi publicada em 1952 em França e estreada em cena no ano seguinte), que o transformou de obscuro escritor avant-gard em estrela planetária, Endgame é talvez o maior destaque da sua dramaturgia. Em parte, é o negativo da dinâmica trágico-cómica do companheirismo poético de Estragon e Vladimir. Escrita em 1954, Fin de Partie só mais tarde se tornou Endgame, traduzida pelo próprio Beckett e que Londres só viu pela primeira vez em 1957. Pejado de um sentido do Fim eminente, o título não podia ser mais literal.
“Something is taking its course” é a frase chave da representação, linguagem meta-teatral para retratar o próprio decurso da peça e ao mesmo tempo descrição de uma realidade aterradora de que apenas as personagens conhecem os verdadeiros contornos. Sem esclarecer a origem dos dois protagonistas – Clov e Hamm – são-nos dados indícios de que se encontram rodeados de destruição e morte, talvez um verdadeiro Apocalipse de que os próprios, a breve trecho, serão vítimas. Comportando-se como os derradeiros sobreviventes, a ânsia primordial é de que a aniquilação não tarde, pondo término à solidão e permanente decadência física e mental em que se encontram. Não há qualquer esperança na chegada de alguém ou de algum evento extraordinário, visto não haver literalmente nada que esperar.
Nesta adaptação de Tania Bruguera, artista plástica de projecção mundial com especial predilecção pela obra do dramaturgo, que trouxe ao Porto a estreia mundial desta sua primeira aventura teatral, o cenário apresenta o corte mais radical com a tradição becketiana. No centenário Mosteiro S. Bento da Vitória ergueu-se uma estrutura cilíndrica fechada de oito metros, construída com andaimes, distribuindo o público por quatro andares. Uma tela branca, com fendas onde os espectadores introduzem a cabeça para ver a peça, completa a visão da cubana.
Aos seus actores, Beckett avisava “nunca deixes que os teus movimentos e a tua voz sejam simultâneos. Primeiro a) a alteração da postura corporal; depois, após uma pausa ligeira, vem a fala respectiva.” A verdadeira comunicação era veiculada pelo rigor matemático das marcações, movimentos e fluidez das falas, mais do que pela expressividade do elenco. Os actores principais – Brian Mendes como Hamm e Jess Barbagallo como Clov – têm um desempenho extraordinário.
Sem a mínima imprecisão ou quaisquer artifícios ou tiques de interpretação, integralmente em inglês (sem a distracção da tradução simultânea) e com as rígidas didascálias de Beckett reproduzidas na perfeição, todo o poder textual se impõe, com os seus jogos irónico-cómicos. O rigor ascético das palavras despidas até ao osso é marcante, impressiona pela sua intensidade, como se nunca antes tivessem sido proferidas ou qualquer repetição fosse impossível, porque exclusiva daquelas vozes, naquele exacto momento.
Talvez seja este o sentido que Beckett procurava quando falava em “extrema simplicidade da situação e tema dramático”. A palavra, pelo seu valor intrínseco naquele enquadramento, atinge a densidade e complexidade das mais intrincadas teorias, com o seu sentido volátil dependente apenas da mundividência de quem a ouve e do desempenho de quem a diz.
Bruguera respeita religiosamente o texto, estendendo a subversão do cenário a parte do elenco, pela subalternização de Nagg e Nell. Clov é o servo, afectado na sua fisicalidade, Hamm o opressivo ex-macho-alfa, agora reduzido à imobilidade, acamado num dispositivo estranho, misto de carreta e cadeira de rodas. Combatem a desintegração que os cerca com rotina e ordem, que tudo indica venha sendo repetida à exaustão. Uma encenação dentro da peça, tentativa desesperada e ridícula de prolongar uma existência cujo sentido há muito se desvaneceu. Hamm, mestre de cerimónias enclausurado no papel da sua vida, repete, reinterpreta e recomeça histórias e invectivas, tenta e falha ao declamar poemas. Também a linguagem, e com ela a razão e a memória, se vão despedaçando.
Os pais de Hamm – Nell e Nagg – são mantidos numa lata com areia, moribundos e sem pernas, totalmente dependentes do filho. Reduzidos pela encenação de Bruguera a mimos mudos, interpretados por actores amadores, as suas falas são ditas por voz-off. Esta alteração significativa nas indicações de Beckett evita a deslocação do norte magnético da peça de onde ela nunca deve desviar-se: a dinâmica desgastante de desdém, sofrimento e dependência mútua entre Hamm e Clov.
Nas suas notas à peça, Theodore Adorno falava num “farol submerso” em referência ao cenário do acto único de Endgame, uma imagem poética e profética que descreve na perfeição a estrutura onde é encenada esta memorável demonstração da actualidade do texto do genial irlandês.
Através da constrição constante das regras em quase todos os aspectos da sua dramaturgia, Beckett produziu a derradeira liberdade: a de decidirmos o que pensar sobre o que se passa em palco, sem a condescendência panfletária da ideologia e/ou da introdução explicativa e contextual a um sentido artificial do todo teatral. Bruguera percebeu profundamente essa verdade e espelhou-a na sua Endgame, não se coibindo de lhe acrescentar luz, proximidade e quiçá esperança, pela via visual e cenográfica, envolvendo activamente o público no processo artístico, com a sua gigantesca instalação cilíndrica. Coartado nos seus movimentos, o espectador vê-se forçado a atentar à cena e inevitavelmente empatizar com a prisão terminal que testemunha, amplificando assim a experiência dramática a um patamar que até de Beckett arrancaria um comentário elogioso, em privado com certeza.
Significados são sobrevalorizados, uma forma de catalogar a torrente de realidade que invade o nosso quotidiano, mas aqui a explicação é irrelevante, incapaz de substituir a vivência e a presença por inteiro no momento. Tania Bruguera captou a essência destas “presenças” ficcionais e acompanhou-a da sua marca, sem se impor ou perturbar a experiência única de assistir a uma peça de Beckett por um elenco à altura do acontecimento.
“Hamm: we´re not beginning to…to…mean something?
Clov: Mean something! You and i mean something! (Brief laugh) Ah that´s a good one!”
Endgame é uma coprodução BoCA, Colectivo 84, Théâtre Nanterre-Amandiers/Festival d’Automne à Paris, Kunstenfestivaldesarts, International Summer Festival Kampnagel, Estudio Bruguera e TNSJ, que segue em digressão para Bruxelas (Bélgica), Nanterre (França) e Hamburgo (Alemanha).
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Foto: © Susana Neves/TNSJ