home Antologia, LITERATURA Ensina-me a voar sobre os telhados – João Tordo (Companhia das Letras, 2018)

Ensina-me a voar sobre os telhados – João Tordo (Companhia das Letras, 2018)

Ensina-me a voar sobre os telhados  (Companhia das Letras, 2018) principia nos pacatos corredores do Liceu Camões, onde o professor Tavares se suicida. Treze dias após a sua morte, dá-se a primeira reunião de partilha entre colegas, ao início como homenagem ao defunto para depois, qual Sísifo, cada um partilhar com os outros a pedra que era incapaz de empurrar sozinho até ao cimo da montanha.

No improvável cenário, surge Tsukuda, luso-japonês, rastilho de uma narrativa que se divide entre memórias roubadas, embustes, demência e uma abordagem constante ao fim último da vida, à busca pela razão da existência. E assim, «esta história, que tinha tudo para ser banal – ou nem sequer ser uma história -, se tornou extraordinária».

Da origem da Humanidade, ou de como costumávamos ser pássaros, aos dias de hoje, em que, pesados e desasados, procuramos em vão a elevação, ante a bonomia dos deuses que de nós escarnecem, o autor divide-se entre um cru realismo e uma abordagem mística que por vezes se confunde com a fé até uma última conclusão: o sentido da vida é tão-somente a morte. Ou talvez uma escolha impossível, entre o adormecimento diário e magnetismo da voragem.

A racionalidade excessiva como sinónimo ou, ao menos, inevitabilidade da loucura, une destinos dissemelhantes, um «narcisista com um padrão invasivo de grandiosidade» e um narrador, que luta diariamente pela sobriedade, com necessidades terapêuticas de altruísmo.

Arrebatado ao Japão, onde a ficção é mais plausível, o leitor é constantemente relembrado da sua origem telúrica, mas consecutivamente convidado a ensaiar um voo. O “manual de instruções para levitar sobre os telhados”, ou de como aquele que é severamente traumatizado poderá elevar-se literalmente, abre-nos uma ferida antiga, uma incómoda dúvida (porque de tão racional quanto insana se nos afigura plausível): será o medo o nosso único entrave? Poderá o corpo exausto, delirante, que se entrega vencido ao vazio, sair vencedor? Porque «não somos apenas aquilo que somos, mas também as limitações que nos ensinaram a ser» … «Deus é nada, coisa nenhuma. É a nossa audácia de dizer sim ao impossível, quando tudo nos impele a dizer não».

A nosso ver, uma incongruência a apontar: entre o karma familiar, a predestinação dos Tsukudas à levitação, e a democratização do voo acessível ao Homem, a cada um de nós, ao leitor, portanto. Ainda assim, o autor não deixa de nos fazer voar sobre os telhados, um voar lúgubre, uma visitação à condição humana, aos desejos de um velho por uma rapariga jovem, à estupidez da morte, da incapacidade, da deficiência, do divórcio, do vício e da solidão, com meros vislumbres do riso e do amor que aqui, não aparece nunca como solução mas antes como aprendizagem.

Por último, mais desabafo que reparo, esta obra é inconfundivelmente masculina, a figura da mulher é transparente. A mãe que padece, a gueixa servil, a esposa que aquece o leito, a beata que tem a seu cargo a ubiquidade da Santa Quitéria, têm formas sem ganhar forma, desprovidas de espessura, mera necessidade ou moldura de atavio. «Não sabemos o que é um sonho porque não sabemos o que não é um sonho» …

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