Em Zurique, Assem e Mariam encontram-se no bar de um hotel e fazem amor. Conversam sem nunca revelarem totalmente quem são. Ela uma arqueóloga iraquiana, ele um militar dos serviços secretos americanos, ao serviço da França nas lutas do Médio Oriente, com uma identidade falsa. Uma ligação especial a este homem, a partir de um poema de Kavafis, leva Mariam a entregar-lhe um objeto de valor histórico incalculável, embora saiba que nunca mais o verá: “A figurinha é feita para ser dada. De mão em mão. De século em século.” Ele carregará aquela efígie de Bès consigo até encontrar um lugar onde a vai depositar no final do romance. Fá-lo-á em Itália do lado de cá do Mediterrâneo, quando Mariam se encontra na Tunísia, do lado de lá, sem ele o saber, em mais uma missão de preservação de relíquias históricas: “Amam-se. Não se veem, não estão no mesmo local, simplesmente olham os dois para o mesmo mar, esse Mediterrâneo de sangue e de júbilo onde nasceram mundos sem par, e amam-se.” Entre o princípio e o final de Escutai as nossas derrotas, de Laurent Gaudé, escritor com obra praticamente traduzida na íntegra em Portugal e recipiente do Prémio Goncourt em 2004, viajamos pelo Mediterrâneo e pelo Médio Oriente, por histórias de heróis só à superfície vencedores. A caminho do Iraque, Mariam sobrevoa esse espaço mitológico oriental, caixa negra de desastres históricos:
“Tudo está ali, uns metros mais abaixo: as campanhas de Alexandre, a muralha que assegurava a Pax Romana, as linhas que Churchill e os franceses traçaram na Conferência do Cairo, a avançada do Daesh. Ela voa sobre o tempo, sobrevoa os homens, o seu minúsculo destino, e nem sequer os vê. Do alto, só se vê a terra dourada do Oriente.”
Partindo de uma fugaz história de amor, o romance apresenta o percurso dos dois amantes de uma noite de forma independente, sem que nunca mais se voltem a encontrar. Ela luta contra a destruição da História pelo Daesh nas terras onde nasceu, resgatando o maior número possível de relíquias dos museus e monumentos em áreas invadidas pelas milícias fundamentalistas. Assem tem como missão encontrar Sullivan Sicoh, um ex-agente americano que integrara a equipa responsável pelo assassinato de Osama Bin Laden, mas que desertou, representando perigo para os interesses ocidentais por se ter aliado a grupos extremistas islâmicos. Assem deverá encontrar-se com Sicoh, suspeito de traficar pessoas, armas e relíquias, e perceber o seu estado anímico: é recuperável ou deverá ser abatido? Acontece que, uns anos antes, Assem integrou o grupo responsável pela morte de Khadafi na Líbia. Sullivan, agora Job, sabendo-o, forçará Assem a entrar no jogo psicológico da responsabilidade moral, e do questionamento do que é um vencedor e um perdedor numa guerra, em que o objetivo é destruir o outro. É só ao encontrar-se com Job em Beirute que Assem descobre que relíquia é essa, tão surpreendente quanto perturbadora, que está nas mãos dele e que ele sabe interessar aos americanos.
O arco temporal da narração é curto, consistente sobretudo numa reflexão sobre o Médio Oriente, como interesse de várias áreas geopolíticas, e no confronto entre esses macro-interesses e o potencial de justiça e livre arbítrio daqueles que, em nome de valores ocidentais, agem naquele território. Mariam preserva objetos históricos ou pilha-os de locais de onde eles nunca deveriam ter saído? Assem contribuiu para alguma justiça global ao matar Kadafi na Líbia ou esse objetivo militar configura uma derrota da sua humanidade? Ao longo da narrativa, a derrota e a vitória dos protagonistas atuais entrecruzam-se com aproximações à psique de outros heróis: Aníbal e a derrota de Cartago; Ulysses S. Grant, general contra os Estados Federados na Guerra da Secessão e, portanto, presidente americano com milhares de mortos no cadastro; e Hailé Selassié, o icónico Rás Tafari, imperador etíope, vencedor contra a Itália invasora mas derrotado pelo comité revolucionário etíope nos anos 70. Esta deriva histórica é o aspeto que verdadeiramente confere interesse ao romance, que mais não pretende fazer do que sopesar o valor daquilo que, enquanto ocidentais, nos parecem as vitórias em prol da nossa segurança – física e civilizacional. Neste sentido, relembrarmos as façanhas de Aníbal e Selassié parece-nos totalmente justificado, já Grant, correndo o risco de sermos algo conservadores, nos escapa um pouco à compreensão. Não era o Mediterrâneo e a sua ponta oriental o fio condutor do romance, inclusivamente dividido em capítulos com nomes de lugares deste espaço geográfico?
Quanto à conversa final de Assem e Job, que o romance de forma competente nos faz ansiar, não consegue proporcionar a “dolorosa reflexão”, anunciada na belíssima capa do livro, sobre a complexidade da luta contra o terrorismo ou da dignidade de homens enviados a outras zonas do mundo para matar. É possível contribuir para a reflexão de um tema atual pertinente a partir de um romance como este, mas teríamos preferido o desenvolvimento, com maestria, do dilema psicológico e moral de Sullivan/Job e Assem, ao confortável dedilhar de filões sentimentais sobre honra e obediência com que, ao fim e ao cabo, somos brindados.
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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