home Antologia, LITERATURA Espião na Primeira Pessoa – Sam Shepard (Quetzal, 2018)

Espião na Primeira Pessoa – Sam Shepard (Quetzal, 2018)

“Era como se estivesse à espera de alguém ou de alguma coisa. A rebuscar nas memórias. Não sabe onde está no tempo ou no espaço.” Pág. 72

Dramaturgo, actor, escritor, Sam Shepard encontra-se entre os mais celebrados autores americanos, tendo sido vencedor de vários prémios OBIE e de um prémio Pulitzer, para além de outros feitos na área cinematográfica. Espião na Primeira Pessoa é a sua derradeira obra, terminada dias antes da sua morte, em 2017. Com 1ª edição na Quetzal em agosto de 2018, o livro é um relato intimista de fragmentos de vida, pensamentos, introspeções e memórias desconexas de quem tem um encontro marcado com a morte. Uma visão desapaixonada e despretensiosa da mente humana perto do fim.

Com recurso a uma linguagem crua, sem elaborações, e pontuada por frases rápidas, que induzem o leitor a um ritmo de leitura quase sincopado, Sam Shepard apresenta-nos uma realidade com recortes de momentos em que um homem espia outro homem.

O espiado é uma personagem quase estanque, um homem velho e solitário, preso por uma doença debilitante a uma cadeira de rodas, à entrada duma casa no cenário de eleição de Shepard: o árido e ventoso oeste americano dos filmes de cowboys, onde reinam a sépia, os horizontes sem fim e a solidão. O espião observa-o do outro lado da estrada (às vezes usando binóculos), fantasia sobre a sua condição, a sua luta, as pessoas que o visitam e as que tratam dele, as conversas que tem, o que pensará. Mas afinal de contas, espião e espiado são a mesma pessoa. O texto alterna entre a primeira e a terceira pessoas. Observam-se, mas rapidamente se fundem, tornando-se por vezes difícil perceber quando começa um e acaba o outro. Do título em inglês – Spy of the First Person – a ideia flui melhor: espião da primeira pessoa, espião de si mesmo.

É inevitável que, sendo esta a última obra de Sam Shepard, escrita quando já profundamente acometido pelas debilitações da esclerose lateral amiotrófica, que causou a sua morte em 2017, se lhe atribua um carácter autobiográfico. É impossível não fazer o paralelismo e fantasiar que Shepard nos deixou um breve vislumbre dos seus últimos pensamentos, mostrando-nos os fragmentos de clarividência, confusão, das quimeras e memórias que o assolaram perto do fim. A forma como o autor faz uso de repetições de palavras, martelando-as como só se faz na privacidade do nosso pensamento, ou se dispersa sobre banalidades e considerações quase filosóficas, que entremeia com recordações lúcidas e acções mundanas no presente – como o levantar-se para virar a página de um livro – ou ignora por completo o fio condutor do tempo, alternando sem aviso passado e presente, permite ao leitor sentir a oscilação entre os momentos de lucidez e os outros, como se estivesse, na primeira fila, a ver o que se passa na mente do espião espiado.

É um livro curto, de capítulos precisos, sem estrutura de maior e difícil de enquadrar em qualquer dos géneros literários que se conhecem. Não é, segundo a crítica internacional, das leituras mais fáceis ou apelativas de Shepard, mas não deixa de ser marcante pelas circunstâncias da sua execução, dado que foi, em grande parte, ditado por Shepard e transcrito pelas irmãs do autor, uma vez que este já não tinha capacidade para escrever. Prima pela ausência de sentimentalismo, a que fácil e justificadamente poderia ter cedido, e não se propõe a servir pretensos interesses que o autor pudesse ter a deixar uma última palavra ou a ser uma elegia prévia.

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