Em Essa Gente, Chico Buarque olha para o Brasil de agora através de Duarte, um escritor one hit wonder cujo único romance de sucesso, O Eunuco do Paço Real (um título que poderia facilmente ser atribuído a Rubem Fonseca) é a sua única conquista. Lado a lado com o bloqueio de escritor, Duarte vê-se a braços com antigas e novas mulheres, um filho distante com quem a comunicação é impossível e dívidas acumuladas de adiantamentos de livros que nunca são escritos.
Essa Gente foge à crítica social direta do Brasil de hoje, apesar de as imagens de violência, pobreza, poluição e demais destruição ambiental e humana estarem presentes. Duarte não precisa de ver os meninos da favela, a polícia a atirar ou os mares manchados (Buarque, 50) para saber que a cidade que odeia e adora em partes iguais está, como ele, em crise. Através de mensagens, entradas de diário e a notícia de jornal que encerra o livro, a narrativa é contada, com retratos vívidos de personagens, quer do romance, quer da vida de Duarte, de sonhos com o pai morto entrecortados com a notícia que chega através da televisão de que “a partir de hoje, por decreto presidencial, posso ter quatro armas de fogo em casa” (Buarque, 19), de cães que comem jornais com as notícias trágicas de mortes, como se as imagens violentas servissem de alimento, quer à notícia quer à criação literária.
A vida de Duarte é marcada pelo impasse em escrever e a impossibilidade de se relacionar com as mulheres que o rodeiam, e ilustram os momentos de embate entre Duarte e classes sociais distintas: entre a ex-mulher, Maria Clara, tradutora e revisora dos romances de Duarte que se refugia em Lisboa depois de uma crise nervosa, Rosane, uma decoradora para gente rica, e Rebekka, namorada de um nadador salvador que faz a ponte entre o escritor e as favelas, ao convidá-lo para fazer parte deste mundo, mesmo que fugazmente. Não é certo se o que lemos é o olhar de Duarte através da janela do seu apartamento no Leblon ou o seu romance, ao qual apenas tem acesso Rebekka, que parece mais interessada na obra do que no seu autor.
“Uma fragilidade emocional hereditária” (Buarque, 193), escreve um psiquiatra sobre Duarte e o seu fim trágico: talvez seja esse mesmo trauma transgeracional que habita n’Essa Gente, gente que escreve e sobre quem se escreve, que coabita na mesma cidade marcada por festas e atos de violência sem nunca verdadeiramente se cruzarem, a não ser em forma de imagens ou na narrativa de romances como estes, de Chico e Duarte.
Por defeito profissional, a Ana Carvalho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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