Jerónimo Pizarro, aqui em co-autoria com Patricio Ferrari, com a ajuda da Tinta da China (que o edita desde que iniciou a sua pesquisa), veio trazer uma nova abordagem à obra de Fernando Pessoa, no sentido de uma dessacralização dos estudos pessoanos, já cristalizados e nem sempre satisfatórios ou sequer cientificamente inatacáveis, e da própria figura do poeta, visto como um semideus de genialidade e criatividade, contribuindo para um retrato mais fiel, contextualizado e integrado de um dos maiores cultores da nossa língua.
Como vem sendo hábito nestas edições, a grafia original é mantida, opção que não é consensualmente aceite, mas reveladora de um grande rigor histórico perante o espólio do poeta e de uma recusa em alterar os originais com qualquer adaptação ou alteração (excepto as necessárias para garantir a legibilidade, sempre devidamente assinaladas).
“Eu sou uma anthologia./Screvo tam diversamente/que, pouca ou muita valia/Dos poemas, ninguém diria/ Que o poeta é um sòmente.”. Assim escrevia Pessoa, em Dezembro de 1932, e é daqui que Pizarro parte à descoberta do vasto universo heteronímico do lisboeta do Mundo.
Na introdução de Eu Sou uma Antologia (Tinta da China, 2016), Jerónimo Pizarro confessa que, dependendo dos critério de inclusão e exclusão, a lista de heterónimos poderá ser ainda maior. Na pesquisa de cerca de 30000 folhas do espólio pessoano, em busca dos chamados “vestígios ficcionais”, o investigador descobre a prática da “despersonalização dramática”, em que várias personagens/“almas” de Pessoa, se vão sucessivamente desdobrando e ramificando em outros nomes, outras vidas. Por exemplo, é de Alberto Caeiro que nasce um “Ricardo Reis latente” e de um Wyatt e um Crosse nasce um conjunto de personagens com o mesmo apelido.
O critério escolhido para inclusão nesta lista foi a “existência de um nexo com pelo menos um escrito (…) ou uma tarefa específica atribuída”. Para além disso, as personagens “são autoras (publicaram textos nas revistas Orpheu e Athena, por exemplo) e por vezes dialogam entre si “.
O que é verdadeiramente Pessoa, vulgarmente conhecido como o Pessoa ortónimo? Ou serão todos estes personagens, heterónimos e pseudónimos também ele, o mesmo, apenas desdobrado em “inúmeros espelhos”?
A resposta fica em aberto, como quase sempre que este gigantesco manancial literário é abordado. Mas o fascínio que emana desta obra reside precisamente na capacidade da sua escrita, quase um século depois da sua morte, ainda suscitar questões essenciais, quase filosóficas (e até místicas para alguns, incluíndo o próprio) sobre os contornos da obra literária e da autoria.
Nesta antologia, esses limites são diluídos, quer entre o criador e as suas criaturas, quer na relação entre as “criaturas”, que se entrecruzam, citam e desdobram, segundo instruções expressas de Pessoa (que nem sempre foram concretizadas), em cartas e escritos, cujos fac-símiles podemos ler e apreciar.
Surpreende (ou talvez não…) a diversidade de registos.
Para quem pensava que o universo heteronímico pessoano se ficava pelo género masculino, encontra aqui algumas excepções. Maria José, uma jovem de 19 anos, corcunda, confinada aos limites da seu quarto, apaixona-se pelo serralheiro que vê passar debaixo da sua janela e escreve-lhe uma carta de amor que sabe que nunca lhe chegará.
Para todas estas personagens, Pessoa criou assinaturas, por vezes até cartões de visita e profissionais, com os quais enviava e recebia correio.
Encarregou-as de escrever em diversas línguas (inglês, francês, espanhol), efectuar trabalhos de tradução e comentário, textos críticos e até sessões mediúnicas, descritas com pormenor.
O detalhe que algumas destas construções ficcionais assumem torna-se a um tempo inacreditável, pelo aparente contraste entre si, e deslumbrante, por serem prova de que, numa mesma mente, cabem tantos quantos sejamos capazes de manter.
No final do Posfácio, numa demonstração de honestidade intelectual e reconhecimento do trabalho anteriormente desenvolvido por outros autores nesta área específica, Pizarro refere ainda personagens presentes noutras obras que procuraram o mesmo desiderato desta colectânea, explicando as razões da sua exclusão e deixando em aberto a investigação sempre inacabada dos muitos Eus pessoanos.
Um livro indispensável, não só para os estudiosos da matéria, como para qualquer bibliófilo, pela sua contribuição no alargamento fundamentado da nossa perspectiva sobre a literatura que molda (e moldará) tanto da nossa portugalidade e do cunho literário lusitano, dentro e fora das fronteiras físicas.
Na vida, como na literatura, a percepção que projectamos e recebemos é tudo. O resto é pura imaginação e conjectura. Desse contraste se alimentou Pessoa e as pessoas/espelhos que albergava. Passaremos gerações a tentar decifrá-las. Este é mais um tijolo dessa construção.
(Texto também publicado em comunidadeculturaearte.com)