Exterminem todas as bestas («Exterminate all the brutes» no original) é uma citação do clássico Heart of Darkness de Józef Teodor Konrad Korzeniowski, mais conhecido como Joseph Conrad (1857-1924), base de Francis Ford Coppolla para o filme Apocalipse Now (1979). Estas referências servem de espinha dorsal ao raciocínio de Sven Lindqvist (1932-2019) neste livro onde traça uma história das origens do imperialismo, do colonialismo e do racismo, assim como as suas consequências, escolhendo como conclusão o brutal desenlace da II Guerra Mundial.
“quando aquilo que fora feito no coração das trevas se repetiu no coração da Europa, ninguém o reconheceu. Ninguém quis admitir o que toda a gente sabia”, [isto é, que] “O imperialismo é um processo biologicamente necessário que, de acordo com as leis da Natureza, resulta na inevitável destruição das raças inferiores.” (267).
A formulação desta e outras pérolas de sabedoria veio de algumas das mais doutas personagens da ciência e da vida pública ao longo de séculos, subvertendo e inventando teorias “científicas” para validar conveniências, com o apoio expresso de vários Estados ditos evoluídos, como Portugal, Espanha, Bélgica, Estados Unidos da América, França, Inglaterra, Holanda e Alemanha (ironicamente o mais lembrado, apesar de ter sido o último a entrar nesta “corrida”).
O livro propõe-se reconstituir o percurso dessas falácias fatais, escolhendo factos históricos documentados, protagonistas (como escritores, cientistas, governantes) e as consequências das suas palavras, actos e omissões. É de morte e luto que aqui falamos, da extinção planeada de vários povos pelo lucro proveniente das terras que ocupavam e o poder que daí advinha durante mais de meio milénio (perpetuado na actualidade por outras formas a que Lindqvist também alude).
Ao contrário do que se passara aquando das Cruzadas, em que o Ocidente se confrontou com povos melhor preparados (cultural, diplomática e estrategicamente, mas também na área da saúde, com experiência de epidemias), a expansão de séc. XV foi bem diferente. Nessa altura, “eram eles próprios portadores dessas bactérias superiores. As pessoas morriam por onde os europeus passassem.” (178)
O início da expansão europeia trouxe consigo a extinção do povo guanche que habitava nas Canárias. Entre 1478 e 1453 passaram de oitenta mil a dois mil e cem. Em 1541 havia apenas um guanche. O resultado da guerra foi decidido pelas bactérias, a modorra como lhe chamavam. As terras foram roubadas pelos colonizadores e os indígenas perderam a sua subsistência. A desinteria, a pneumonia e as doenças venéreas fizeram o resto. Porquê este exemplo tão específico?
“Este grupo de ilhas no Atlântico foi o infantário do imperialismo europeu. Os principiantes aprenderam aí que as pessoas, as plantas e os animais europeus se dão muito bem até mesmo em zonas onde não existiam por natureza. Aprenderam também que, embora os habitantes indígenas possam ser superiores em número e resistir até às últimas, são vencidos, sim, exterminados – sem ninguém saber realmente como aconteceu.” (177)
A expansão americana, iniciada por Colombo em 1492 foi ainda mais desastrosa. À época, a população europeia e a americana tinham dimensão equivalente (aproximadamente setenta milhões), mas nos trezentos anos seguintes, a população europeia aumentou até 500% e a americana reduziu até 95%. Novamente, a causa de morte maioritária foi a doença (assim como a fome e as condições de trabalho desumanas), mas “a causa subjacente era a seguinte: os índios eram demasiado numerosos para terem qualquer valor económico no quadro da sociedade dos conquistadores.” (179)
A diferente valoração das vidas humanas, de acordo com a cor da pele e a origem, foi o motor deste avanço imparável e demasiado lucrativo para ser abandonado, suportado pelo sistema financeiro mundial, que desenhou a distribuição de riqueza pelo mundo tal como a conhecemos hoje. Lindqvist exemplifica:
“Quando Darwin publicou A Origem do Homem em 1871, a caça aos índios na Argentina ainda prosseguia, financiada por um empréstimo obrigacionista. Depois de expulsarem os índios da sua terra, esta era partilhada entre os detentores das obrigações, dando cada obrigação direito a dois mil e quinhentos hectares.”
Hoje os activos e as oportunidades diversificaram-se, a narrativa tornou-se mais sofisticada, mas a fome de poder e influência mantém-se insaciável, com efeitos facilmente comprovados a cada novo ciclo noticioso. Onde antes o território detido por cada nação era o factor identificador de supremacia, hoje o poder económico e financeiro (e bélico) é o barómetro.
Nada melhor do que as eloquentes e urgentes palavras do autor para a conclusão deste e do seu texto:
“Em todos os lugares do mundo em que o conhecimento é reprimido (…) O Coração das Trevas está a ser posto em cena./Já sabe quanto baste. Eu também. Não é de informação que carecemos. O que nos falta é coragem para compreender o que sabemos e tirar conclusões.”
Um livro essencial, uma das inspirações para o excelente documentário homónimo de Raoul Peck que encontram na HBO.
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