Reza assim o manual de leitura da peça Fado Alexandrino, homónima do clássico publicado em 1983 de António Lobo Antunes: “Disse em tempos que o livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos: reflectem-me a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber qual dos dois somos. Tento que cada um seja ambos e regressemos desses espelhos como quem regressa da caverna do que era. É a única salvação que conheço e, ainda que conhecesse outras, a única que me interessa.”
Em conversa com um amigo, recordava o tabu de um cabal conhecimento das circunstâncias que rodearam o 25 de Abril, começando pelos seus agentes (à esquerda, à direita e ao centro), passando pela lei vigente e o status quo que contribuem para esse silêncio, o “nevoeiro” de que fala João Gil no mesmo manual, e como a Arte se revela ainda incapaz de reclamar o papel que poderia (deveria?) ser o seu: repor a verdade, sob pena da sua irrelevância (da verdade e da Arte) diante das ficções omnipresentes em loop.
Basta observar a cobertura televisiva do cinquentenário da revolução: as imagens de arquivo estafadas de sempre, as celebrações e discursos oficiais e oficiosos das mesmas cabeças falantes, masculinas de preferência… A eterna citação do Leopardo de Lampedusa não só é actual como actualizada de forma sofisticada, para camuflar o óbvio: sabemos pouco do que se passou para além da história oficial e está no exército a chave para descodificar o nosso Abril de 74 na integra.
“Mas não houve sangue, meu Capitão, não houve uma revolta a sério. Os que mandavam antes ocupam o poleiro outra vez, continuamos na mesma nesta terra de merda. Tanta chinfrineira para quê?”
Esta peça veio devolver-me a esperança na possibilidade da “arte-espelho” em que, não só nos revemos (quem não tem um familiar que passou pelo “Ultramar”, quem como militar, quer como colono?), como reconfiguramos a nossa perspectiva dos factos que a História reclamou como verdade absoluta. Talvez seja este o principal atractivo desta produção do TNSJ: recuperar a ligação às narrativas invisíveis desta época, com a inteligência e artifício de nos fazer sentir identificados com elas, por muito que as décadas de 60, 70 e 80 nos sejam alheias. Pelo caminho, evita a habitual “política de terra queimada” ou “revisão” do passado e dos textos originais, quase sempre desastrosas (excepto para quem as faz e respectivas trupes), mantendo a integridade, potência, frontalidade e humor de um texto polifónico, dilacerante e delirante, alimentado a álcool, desprezo e auto-comiseração, em que se consomem, em fogo lento, os anti-heróis que se tornam a família que queremos esquecer depois de umas horas de convívio, mas de que sempre nos compadecemos.
Os protagonistas são quatro militares da Guerra Colonial, destacados para Moçambique. Desapaixonados e cínicos, hedonistas e destituídos de sentido moral ou, como diz o povo, “tento na língua”. Devastados pelo choque do regresso à metrópole, depois de anos de desmandos e poder sem limites nas colónias. Despojados de dignidade e ignorados pelo regime que sacrificou a sua juventude em nome de interesses vãos e propagandistas, são recebidos a contragosto pelos parentes próximos, somando o sentimento de orfandade pátria com a familiar. Os pais desconfiam das mudanças, recusam as benesses de outrora e, sem cerimónias, afastam-nos do lar primevo; as esposas, formalizadas na pressa da partida, descobrem os prazeres da liberdade que o dinheiro velho e os privilégios novos lhes conferem; o stress pós-traumático e a culpa conspurcam quaisquer vestígios de verdadeiro prazer (será que alguma vez existiu, com tanta contrição cristã?) e esperanças de redenção sob os auspícios de Baco e Afrodite. A solidão desapontada e desesperada mascara-se de ego macho e esmaga a humanidade e a individualidade. A revolta, afinal pífia, resume-se a lágrimas enraivecidas, úlceras, impotência e berros insuflados pela coragem alcoólica.
A felicidade é uma ilusão distante, perseguida em noites longas e nebulosas de boîte, na companhia de putas, sodomitas e camaradas de batalhão, misturados com os espectros dos assassinados sem razão e o estouro das granadas e o pavor das torturas e emboscadas, convidadas de honra da paranóia tatuada nas suas almas perdidas, alimentada pela dor e a estridência que tentam abafá-la em vão. A derrota é absoluta, trauteada e enganada ao raiar dos dias, embalada em braços anónimos e calorosos que gritam vivas à recém-nascida liberdade.
A Revolução é o intervalo na ressaca dos ficaram para trás no seu dealbar, mesmo os de patente mais alta. O ultraje da vergonha e da exclusão é coberto pelo manto diáfano e ruidoso da insubmissão e o capitão, eterno interlocutor de monólogos vazios e verdades inconfessáveis senão na Morte, é um manequim (literal, daqueles de montra, numa metáfora feliz) inerte e inútil, omnipresente como um deus pré-fabricado à medida dos tempos.
Tudo isto para dizer o quê ao certo? Que é difícil manter a distância crítica diante de um espectáculo poderoso e assustadoramente actual.
O sucesso deste “Fado Alexandrino” deriva de um cuidadoso trabalho de encenação e de interpretações irrepreensíveis e há vários detalhes que atestam a sua excepcionalidade. O rigor das marcações do Nuno Cardoso e o cenário do veterano F. Ribeiro, estruturado em vários níveis, complementados pelo filme que vai sendo projectado ao longo da récita (com flashbacks e imagens de arquivo, entre outras sugestões visuais), contribuem para a visibilidade optimizada de todos os actores e a percepção apurada das respectivas narrativas, em tempo real e sem truques, conferindo eficácia e um ritmo bem marcado à multidimensionalidade das personagens e à profusão de vozes que se entrecruzam, com diversos narradores a assumirem o protagonismo, sempre de modo inteligível e fluído. Para esta dinâmica contribuem também rápidas mudanças de cenário, a ausência de movimentações desnecessárias de adereços e as subtis transformações de figurinos, sem que se apressem ou desvirtuem as interpretações, mantendo assim a gravitas subtil da elegia, comum a todo o espectáculo.
A longa duração da peça, um óbice em abstracto, é totalmente legitimada pelo decurso das cenas, em geral pungentes e de um humor brutal, negro, mas também situacional e físico, mesmo quando repletas de texto. O fio da meada não se perde porque os actores o seguram com firmeza e classe, todos sem excepção, desde o mestre de cerimónias do Bar Boîte Madrid (Roldy Harris), passando pelas estóicas Ana Brandão, Joana Carvalho, Lisa Reis, Patrícia Queirós e Telma Cardoso, e os incansáveis Paulo Freixinho e Jorge Mota, com dezenas de personagens divididas entre si, que nunca passam despercebidas, e pela inesquecível versão lusa dos quatro cavaleiros do Apocalipse: o Soldado do Sérgio Sá Cunha, o Alferes do Pedro Almendra, o Tenente-Coronel de Pedro Frias e o Oficial de Transmissões de António Afonso Parra. As falas repetidas tornam-se bordões, padrões repetidos à exaustão que resumem estas existências em busca de uma qualquer redenção ou apenas de ocupar o tempo, aliviar o tédio, fazer pela vida e enganar a morte. O acto final é já uma prova de resistência para todos, actores e público. Atam-se as pontas soltas e os quatro juntam-se na esperada queda estrondosa.
“É curioso como tudo se tornou tão depressa como antes do golpe, meu Capitão. Tirando umas quantas paredes pintalgadas e uns quantos palermas que se foderam para nada.”
Todos gostamos de uma boa história, base da nossa cultura e a identidade desde os primórdios da linguagem e da civilização, quando passava “de boca em boca”. Quase todos… Num dos intervalos, o aparte previsível: “a peça até é boa, só é pena o chauvinismo”. Cómica e frustrante tal tirada, depois da mestria demonstrada até ali na demolição da pretensa superioridade imperial de um Portugal pequeno e ridículo, agarrado até à morte às glórias de antanho. A intenção e a subtileza pouco podem diante das palavras tomadas por si, sem contexto ou interpretação. 2024 condensado num comentário e uma explicação curta para a crescente irrelevância da câmara de eco das tendências moralizantes em que se tornou o teatro actual. O público também é parte do problema, mas não convém alienar quem ainda resiste.
O Teatro é o último reduto desta tradição da oralidade, interpretada em tempo real e irrepetível, ainda que onerada com o peso algo anquilosante da institucionalização, que tantas vezes destrói o seu impacto. Partindo de um dos grandes textos do cânone literário português e universal, focado nos seus derrotados e nas narrativas que a História esquece e oculta para não perder a sua patina, “Fado Alexandrino” confronta-nos com a nossa eterna mitificação do passado, que arrasta esta democracia na meia idade para tiques óbvios da Velha Senhora. Orwell sabia do que falava (“Who controls the past controls the future: who controls the present controls the past.”). Salazar escolheu engrandecer o passado para revitalizar um povo humilhado e perdido no caos republicano, embora ironicamente o mantivesse na penúria dos pés descalços e o lembrasse à força da virtude da modéstia e da obediência. A democracia escolheu esquecê-los (Salazar com os seus séquitos sanguinários e o passado glorioso da Nação), ou melhor, lembrar as partes mais limpas e limpar as épocas mais sujas, ao invés de aproveitar a Revolução para começar do zero.
A nossa crónica incerteza em relação ao futuro vem também da incapacidade de esclarecer cabalmente o “dia inicial inteiro e limpo” e, com ele, também o “estado a que chegamos”. Mas diante das dúvidas, sempre a liberdade. Nesta como noutras guerras (revoluções, contra-revoluções…), a culpa morreu solteira. Resta-nos continuar a reconstitui-la e idealmente expiá-la e exorcizá-la de vez. Se possível pela grande Arte.
Que este seja (mais) um começo auspicioso.
Ficha Técnica
encenação, adaptação cénica e dramaturgia Nuno Cardoso
apoio à adaptação cénica e dramaturgia Fernando Villas-Boas, Florian Hirsch
cenografia F. Ribeiro
desenho de luz Nuno Meira
desenho de som e sonoplastia Joel Azevedo
música Pedro “Peixe” Cardoso
figurinos Nelson Vieira
vídeo Luís Porto
movimento Roldy Harrys
assistência de encenação Pedro Nunes, Nuno Pacheco
assistência de figurinos Nádia Mattos
interpretação
Ana Brandão Ajudante do Ilusionista; Borbulhoso; Cabelo Roxo; Contabilista; Esmeralda; Ilda; Otília; Narradora; Violoncelista
António Afonso Parra Oficial de Transmissões
Joana Carvalho Adelaide; Edite;Gémea; Mulher do Tenente-Coronel; Narradora; Porteira; Civil
Jorge Mota Agente de Tóquio; Avó do Soldado; Capitão Rodrigues; Careca; Coronel Ricardo; Fotógrafo; Jardineiro; Hilária; Homenzito da Pasta; Inspetor Gordo; Mãe do Tenente-Coronel; Médico; Narrador; Porta-Voz Monárquico-Cristão; Professor Rdwkvsmky; Secretário de Estado; Tio Ilídio; Vizinho
Lisa Reis Filha do Tenente-Coronel; Inês; Mulata; Narradora; Tenente do Ministério
Patrícia Queirós Capelão; Cirurgião; Emílio; Madrinha do Oficial de Transmissões; Mãe da Inês; Mãe da Lucília; Melissa; Narradora; Pires; Tia Isaura;Viúva do Pires
Paulo Freixinho Cabo Condutor; Capitão Mendes; Comandante do Quartel; Coronel Ramos; Coronel Ricardo; Gerente do Lar; Jaime; Mãe do Tenente-Coronel; Homem-a-Dias; Narrador; Olavo; Outro Pide; Perito; Pintor; Taxista
Pedro Almendra Alferes
Pedro Frias Tenente-Coronel
Roldy Harrys Desiré; Embaixador Grisalho; Vítor; Zeca
Sérgio Sá Cunha Soldado
Telma Cardoso Dália; Juiz; Lucília; Mariana; Mulher de Xaile; Narradora; Odete; Outra Gémea
produção Teatro Nacional São João
coprodução Centro Cultural de Belém, Teatro Circo de Braga, Teatro Aveirense, Théâtre National du Luxembourg, Teatro das Figuras
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