Sábado, pela manhã, fomos ao Teatro Nacional Dª Maria II ver Fake e demos o tempo por muito bem empregue. Não é demais referir o rigor no cumprimento das regras sanitárias exigíveis e são sempre garantidos momentos de viagem, descoberta e abstracção de que, mais do que nunca, estamos precisados.
Somos provocadoramente saudados com um cadáver que aterra no palco, sobre cujo assassinato, qual thriller cinematográfico, decorre todo o enredo da peça. Norma B – por Sandra Faleiro – escritora de policiais, é a viúva e principal suspeita do assassinato do marido.
A peça é surpreendente em todos os aspectos, dinâmica e arrebatadora. O palco, aproveitado ao milímetro, divide-se em vários espaços diferenciados onde assistimos ao que se acredita serem, em simultâneo, os esforços de investigação do crime e o casting para a encenação do mesmo. Quem matou Daniel? A utilização do vídeo permite explorar com detalhe as cenas, cada gesto e expressão, com a proximidade (em regra vedada ao teatro) que só a câmara possibilita.
A provocação ao espectador é constante e acutilante, entre momentos de bom humor e o testemunho de como se constrói uma realidade meramente aparente, confrontados com a dicotomia entre o que se vê no ecrã e se presencia em palco. Afinal qual é a verdade? Este é o ponto fulcral de toda a peça, transportando-nos para a actualidade das fake news e das redes sociais e informativas. Em que queremos acreditar? No que é que nos fazem acreditar? A realidade, concluímos, pode ser construída, manipulada, ao bel prazer de agendas próprias, como as audiências, as vendas, o sucesso.
Outra surpresa é o facto de cada récita ser irrepetível. A personagem principal, Norma B, pode ser interpretada por Sandra Faleiro, Isabel Abreu ou Beatriz Batarda e, se a essência do teatro reside precisamente no corpo e dimensão que cada actor empresta à sua personagem, o espectador assiste apenas a uma das múltiplas possibilidades de Fake. Apesar de podermos visualizar todo o elenco em simultâneo, nem todos os actores estão presentes em cena, pormenor que torna o casting para a personagem de Norma B magistral.
A preocupação com os detalhes é ainda digna de particular referência, como o fakeburger, o fakegel, o fakenike e, é claro, o fake bebé. Cientes de como se constrói uma realidade falsa, mas credível, porque nem só a câmara permite construir a ficção, criar chuva e tempestades, é inevitável a transposição para o quotidiano desta encenação. Na verdade, estamos diariamente sujeitos às mais diversas formas de manipulação, com o perigo agravado de podermos afirmar ter sido testemunhas oculares de uma verdade “falsa”, como sempre vítimas dos nossos preconceitos e idealizações, das nossas fragilidades e limitações.
Ficha Técnica
texto Inês Barahona e Miguel Fragata
encenação Miguel Fragata
com Anabela Almeida, Carla Galvão, Duarte Guimarães, João Nunes Monteiro e Beatriz Batarda, Isabel Abreu ou Sandra Faleiro
interpretação vídeo Beatriz Batarda, Cirila Bossuet, Isabel Abreu, Madalena Almeida, Márcia Breia, Sandra Faleiro, Sílvia Filipe e Teresa Madruga
música Hélder Gonçalves
cenografia Henrique Ralheta
figurinos José António Tenente
desenho de luz Rui Monteiro
desenho de som Nelson Carvalho
vídeo Tiago Guedes e João Gambino
direção técnica Cláudia Rodrigues
operação de som Tiago Correia
operação vídeo Bernardo Santos e Francisco Romão
construção da cenografia Thomas Kahrel
design gráfico Mariana Rosa e Rita Vieira
tradução para inglês Patrícia Azevedo da Silva
produção executiva Clara Antunes e Luna Rebelo / Formiga Atómica
produção Formiga Atómica
coprodução Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Nacional São João, Cine-Teatro Louletano
apoio financeiro Câmara Municipal de Lisboa
apoio à residência artística Centro Cultural de Belém, Polo Cultural das Gaivotas | Boavista, Companhia Olga Roriz
apoio ETIC – Escola de Tecnologias, Inovação e Criação
Foto © Pedro Macedo
Mais Teatro AQUI