home Antologia, LITERATURA Filho da Mãe – Hugo Gonçalves (Companhia das Letras, 2020)

Filho da Mãe – Hugo Gonçalves (Companhia das Letras, 2020)

Filho da Mãe de Hugo Gonçalves, publicado pela Companhia das Letras, é uma boa surpresa no panorama atual da literatura nacional. Marcado por um estilo simples, linear e de fácil compreensão, está longe de ser um livro básico, dos que lemos uma vez sem exemplo e que não nos fazem perguntar “quem escreveu”.
Hugo Gonçalves traz-nos uma escrita de memórias, profundamente pessoal e íntima, em quarenta anos de vida marcados, de forma indelével, pela ausência da mãe. Não seria interessante a leitura, se a dor da perda e a gestão dos danos causados na dinâmica familiar fossem, como são não raras vezes, apresentadas com uma aura de filosofia redentora, de descoberta de luz nas trevas e divagações afins. Ou se Hugo Gonçalves nos fizesse percorrer caminhos tortuosos de dor e desmoronamento pessoal, tão própria de um estilo mais sombrio, também consabidamente na moda. Não é assim que Filho da Mãe nos chega.
A doença, a morte, o seu impacto na vida de dois irmãos e da sua família, são contadas como foram: numa narrativa sequencial de factos, às vezes seca, outras perturbadora, quase nunca doce. Diríamos que o narrador nos conta como racionalizou e sublimou a perda da mãe, sem pretender comover-nos ou chocar-nos, mas devagar, desde a infância, permitindo ao leitor perceber e desenhar os traços de caráter e personalidade do menino de oito anos que recebe a notícia da morte da mãe no regresso da escola.
Pela sua mão vamos percebendo quem é o adolescente, como se constrói a sua identidade marcada por este corte abrupto no laço mais profundo que conhecia. Vamos viajando pelas cidades que percorre, somos sensíveis às suas razões e fraquezas, precisamente porque, em momento algum, Hugo Gonçalves “dourou o cenário.” Mas também não o tornou dantesco – foi, simplesmente, vivendo e constatando.
Há, ainda, um outro aspeto que enriquece esta obra, e que se traduz na consciência, profunda e verbalizada, de que os Outros, mesmo aqueles que nos são muito próximos, como os pais, são muito mais do que o que conhecemos deles, o que nos transmitem ou conseguimos apreender pela vivência em comum. É simultaneamente fascinante e perturbador perceber a vida que existe neles, nesses outros que achamos pertencerem-nos, o que foram antes de nós e são no seu íntimo, e o que nos permitem que saibamos deles: “Sinto-me tentado a procurar o início preciso do cancro, o instante do lapso da célula, como se assim pudesse desvendar a maior incógnita de todas e acreditasse que, atribuindo à doença a lógica de um princípio, de um meio e de um fim, irei obter pelo menos um fragmento de tudo o que não conheci da vida e da morte da minha mãe.”
Vale a pena ler.

Por defeito profissional, Joana Aroso escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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