No segundo dia de Inverno de 2017, Débora Umbelino, Roberto Caetano, Telmo Soares, Rui Gaspar, João Marques e Pedro Marques, estão em casa no palco do Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria. E é assim que nos sentimos naquela sala de espectáculos esgotada, para ver SURMA e os First Breath After Coma.
SURMA – projecto da leiriense Débora Umbelino – é a revelação do momento. Com apenas 22 anos, esta verdadeira one-woman-band, enche o palco com a sua presença, entrega e alegria contagiante, onde domina teclas, samplers, cordas, vozes e loop stations, em sonoridades que fogem do jazz para o post-rock, da electrónica para o noise. Débora não pretende ser cantora e assume-o. Usa a sua voz como instrumento para cantar vocábulos em “surmês”: palavras indecifráveis, murmúrios, numa exploração fonética. Quis inventar a língua de SURMA, e fê-lo.
O que de facto lhe interessa (e nos interessa) é a emoção que transmite nesses sons vocais. E é, na verdade, difícil não nos deixarmos envolver por estas canções difíceis de encaixar em apenas um estilo musical, com elementos gélidos, claramente baseadas nas paisagens da Islândia e da Escandinávia, apesar de criadas em Leiria, em temas como Múm, Kismet, Drög ou Hemma (nome da avó de Débora).
A inspiração chega-lhe de todo o lado. Débora vive e absorve o mundo que a rodeia, com uma curiosidade e gosto quase pueris. Os títulos das canções vai buscá-los ao holandês, norueguês ou africâner. SURMA não tem nem quer ter limites. No tema “Voyager”, por exemplo, recorre a samples de temas de Ladysmith Black Mambazo, um grupo coral africano que trabalhou, entre outros, com Paul Simon, no seu Graceland. Ainda assim, SURMA não se entrega totalmente ao electrónico (toca guitarra e piano entre outros instrumentos), conferindo uma organicidade ainda mais evidente às suas canções.
Débora interage, brinca com o público, faz-nos parte do espectáculo, com uma energia maravilhosa e genuína. Brinda-nos com um improviso que, nas palavras da própria, apenas poderia correr “mal ou muito mal”. Não foi de todo o que aconteceu e a sala levantou-se para aplaudir aquele presente de Natal antecipado.
O concerto foi centrado em Antwerpen, o seu álbum de estreia, lançado em Outubro deste ano. O disco retrata o mundo privado de SURMA e essa intimidade flui com naturalidade. Débora leva-nos para paragens mais ou menos incertas, com paisagens desconhecidas, mas sempre com muito prazer na viagem.
A segunda parte do concerto estava reservada para os First Breath After Coma – nas palavras de Débora, os seus manos mais velhos –, e começou com a presença solitária e inesperada do bailarino Rui Paixão, em palco.
Aos poucos começamos a ouvir, ainda por detrás da cortina e com o palco a negro e vermelho, a bateria galopante de Pedro Marques, que se expressava num equilíbrio perfeito de graves e agudos. Em seguida, entrou o teclado de João Marques, a criar uma atmosfera onírica, banda sonora perfeita para a exibição de Rui Paixão, o baixo de Rui Gaspar e, por fim, um conjunto de vozes (principal e coros), que uniu os restantes instrumentos num canto sussurrado.
Tal como SURMA, os First Breath After Coma fazem do palco a sua casa, onde deixam, sem dúvida, a sua marca. O seu nome, encontraram-no no título de uma canção de 2003, dos Explosions in the sky.
O álbum que nos apresentam – Drifter, saído em Maio de 2016 –, é pontuado por canções cheias de textura, conseguida também, em grande parte, com os sons captados na rua pelos diversos elementos da banda (desde o canto dos pássaros, ao som de água a correr), e após serem manipulados electronicamente, acrescentados às canções de forma a criarem diversas e novas camadas sonoras.
As canções de Drifter conseguem ser verdadeiras epopeias sonoras, facto evidenciado quando a banda nos presenteou com as “Tierra Del Fuego: La Mar” e “Tierra Del Fuego: Nisshin Maru”. Como nos foi contado pelo vocalista Roberto Caetano (com alguma piada por ter de o fazer pela enésima vez – “contar a história das baleias”), estes dois temas resultam da interpretação do livro Mundo Del Fin Del Mundo, de Luís Sepúlveda, que nos relata a história de um navio japonês que caça baleias em águas chilenas. As baleias, em certo ponto da história, apercebem-se da ameaça que este navio representa e unem esforços para o afundar – acabando por o conseguir.
Tendo presente a história que inspirou as canções, quando ouvimos “Tierra Del Fuego: La Mar” e “Tierra Del Fuego: Nisshin Maru”, conseguimos verdadeiramente percepcionar tudo na primeira pessoa: antes da revolta, onde tudo é calma, expressa através de guitarras serenas e ritmos lentos. Aos poucos, o adensar do suspense, com as guitarras em turbilhão, e quase vislumbramos a chegada do barco e a inesperada violência das baleias. Por fim, o combate em si, com o rufar de timbalões e um crescendo de guitarras e teclas.
No encore, os manos mais velhos chamam a “caçula” ao palco para uma interpretação magnífica, quase a capela, de “Salty Eyes” o primeiro single e o tema que abre Drifter. É um momento bonito, simples, com uma melancolia intimista que levou o público a levantar-se e a aplaudir, enquanto continua a entoar o final da canção.
O aplauso é também nosso, pelo excelente concerto.
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